Operação Adão e Eva

 Minha mãe passou grande parte da vida dividida entre o amor e o ódio a Martim Afonso de Sousa.

Meu pai, que não quis me conhecer, nem me reconheceu como filha, jamais obteve dela o perdão por estes pecados.

Martim Afonso trouxera minha mãe das ilhas de Cabo Verde em 1530, se não me falha a memória. Ela o amou com fervor, mesmo sabendo que era apenas amante dele. Talvez no fundo, aquela cabo-verdiana de olhos verdes alimentasse a esperança de casar-se com o português, da mesma forma que a índia Paraguaçu houvera se casado com Diogo Álvares Correia, o Caramuru. Ambas eram belas mulheres e muito se pareciam em sua coragem e devoção.

Mas isto não aconteceu.

Em 1534, para fúria de Martim Afonso de Sousa, minha mãe engravida. Ele livra-se daquele estorvo, enviando-a para o sul do Brasil, aos cuidados do padre jesuíta José de Anchieta. Foi quando se estabeleceu no coração de Maria da Glória o sentimento de amor e ódio que a acompanharia até sua morte, em 1556.

Eu nasci em 1535 na aldeia dos índios Temininó, em Igteroy – Rio de Janeiro – e fui batizada pelo padre Anchieta com o nome de Marina da Glória. Na época, minha mãe servia ao religioso – e o serviria até o fim da vida – em seu trabalho de catequese.

O amor e o ódio que Maria da Glória destinava a Martim Afonso de Sousa, fizeram com que eu crescesse com minha mãe me ensinando a acender uma vela para Deus e outra para o Diabo.

Aprendi muito cedo a manipular os homens, a fazê-los sucumbir a uma paixão, usando isso em meu próprio benefício. Inteligência e atributos físicos não me faltavam. Eu conseguia despertar até a libido dos padres.

Os jesuítas me ensinaram a ler e escrever em português, francês e latim. Passei a dominar estes idiomas, falando com uma fluência espantosa.

Maria da Glória encarregou-se de me fazer consciente da beleza que herdara dos pais e cedo desvendou para mim todos os mistérios do sexo.

Poupou-me, entretanto, do conhecimento de alguns sentimentos comuns à humanidade, tais como, amor, ódio, medo, ciúme, bondade e compaixão.

Tornei-me amoral.

Observando José de Anchieta, aprendi a arte da intriga.

Anchieta estava longe de ser um santo. Bolinava-me os seios desde que fiquei saradinha. Aquilo nunca me assustou e passei a dar até uma certa corda ao apóstolo da Companhia de Jesus, em troca de determinadas vantagens.

Impotente, mas safado, gostava de fazer comigo o que ele chamava de parfumerie. Um tipo de preliminar que parecia eterna, onde usava a língua e os dedos com maestria. Eu gostava do padre Anchieta e acabei tornando-me sua aliada, quando ele necessitou dos meus serviços para obter informações sobre os invasores franceses de Nicolas Durand de Villegaignon.

Em 1557 eu estava sozinha no mundo e a Companhia de Jesus era muito poderosa. José de Anchieta, através de uma secreta rede jesuítica de ligações, conseguiu embarcar-me no navio “Serpente”, de propriedade do judeu Jacob Cauzvigny, um armador canalha que devia favores à Companhia.

Era o início da missão, que a vaidade infantil do jesuíta batizara com o hilariante nome de “Operação Adão e Eva”.

O plano inicial era simples: para todos os efeitos, eu seria uma beldade nativa da Martinica raptada pelo capitão da embarcação, que, “em virtude dos problemas causados pela presença daquela mulher espetacular à bordo”, havia decidido abandoná-la em terra, na recém-criada França Antártica. Começava a aventura que iria me transformar na primeira espiã da História do Brasil.

Henriville, era um aglomerado à beira-mar no continente, reduto francês hostil à Villegaignon. Meu contato neste lugar era Jean de Coynta. Um traidor calvinista disfarçado de católico, responsável pela cobertura que eu precisava para levar à cabo a missão. Ele simulara ter me comprado à Jacob Cauzvigny, e fingindo ser sua escrava eu não despertaria suspeitas. O tal Coynta, bêbado metido a poeta, era um atraso de vida que passava os dias tentando me seduzir com versos medíocres. No começo achei que poderia livrar-me facilmente do imbecil, usando apenas jogo de cintura. Mas o sujeito era pegajoso e só parou de encher quando ameacei entregar seu comportamento aos jesuítas.

Enquanto Villegaignon não aparecia no continente, meu trabalho era ganhar a confiança dos índios tamoios, aliados dos franceses, – mair, como eles chamavam – o que não foi tão difícil. Eu aprendera a língua dos índios nas missões de catequese de Anchieta, acompanhando minha mãe.

A parte complicada foi conseguir convencer franceses e tamoios que aprendera a língua geral com um tamoio embarcado no “Serpente”, na longa viagem entre a Martinica e a Guanabara. Usando aqui uma força de expressão, foi preciso gastar muito latim até que eles ficassem convencidos. Mas o fato é que acabei me saindo bem e conquistando a amizade de Guaracy, feiticeira da tribo e amante de Villegaignon, peça importante para que meu plano fosse bem sucedido.

Os ventos trouxeram mudanças em três navios de França, chegados à Guanabara em 15 de março de 1557. Vieram no “Grand Bretagne”, “Petite Roberge” e “La Rosée”, trezentos calvinistas comandados de Bois-le-Comte, sobrinho de Villegaignon. Entre a tripulação estavam artífices, os soldados, intérpretes, uma velha e cinco moças – as primeiras européias a desembarcar no Brasil. Durante uma semana elas desafogaram uma longa fila de homens, que, sabe-se lá há quanto tempo, estavam sem deitar com uma mulher.

Mas assim que a semana se esgotou, tudo voltou ao normal. Então uma das moças, curiosa, aproximou-se de mim.

Collete não deveria ter mais que dezoito anos. Muito pouco para uma moça saber a quantidade de artimanhas sexuais que ela sabia, capazes de fazer corar um frade de pedra. Collete era alegre, espirituosa e quase não tinha maldade. Sua beleza desconcertante e os cabelos louros compridos, faziam com que os tamoios a enxergassem com um tipo de respeito ingênuo. Porém, a francesinha não passava de uma dame de boudoir. E ia me ser útil, eu pressentira. Ainda não sabia como, mas ela teria um papel na missão.

Collete  juntou-se a mim e a Guaracy, nos banhos que tomávamos todas as manhãs, na cachoeira do rio Kariók. Ríamos e tagarelávamos, as conversas picantes que mulheres tem longe das companhias masculinas.

A velha e as outras moças nunca nos acompanharam. Preferiam dormir até que o sol estivesse a pino, o que era bom para os meus planos.

Foi através de Collete, que eu soube que Villegaignon deixaria a ilha fortificada de Serigipe, onde vivia, para vir ao continente naquela noite. Deitando seguidamente com os homens de sua guarda pessoal, ela passara, sem querer, a ser minha principal informante, descobrindo o que acontecia por trás das muralhas do forte Coligny, arrancando dos soldados todo tipo de inconfidências e repassando-as a mim com a maior inocência.

Guaracy também soube da visita. E embora não tenha feito comentário algum, foi-lhe impossível segurar a excitação. Registrei isto.

Corri para casa, dei a notícia a Jean de Coynta e intimei-o a oferecer um jantar ao comandante francês. Era minha oportunidade. Eu não estava disposta a perdê-la.

O padre José de Anchieta tem parte com o demo. Como foi que o velho conseguiu um vidrinho de perfume com a essência usada por uma certa dama francesa, de nome Diana de Poitiers, nunca consegui descobrir. Mas o fato é, que conseguiu o cheiro desta Duquesa, que, em tempos idos, muitas vezes se deitara com Villegaignon. Trouxe o vidrinho comigo.

“ – Ser-lhe-á útil” – ele me disse. O jesuíta era o cão chupando manga.

Preparei um peixe à Martinique, que ficaria na história. Na verdade era uma moqueca que minha mãe aprendeu fazer na Baía e cuja receita repassara à filha. Em horas como esta, sinto saudades e muita falta de Maria da Glória. Ela certamente se orgulharia da utilidade que eu dava a tudo que me ensinara.

O jantar foi regado a excelentes vinhos, malocados por Jean de Coynta numa caverna geladinha, que antes de minha chegada já fora secreta.

Tenho que reconhecer o gosto apurado do traidor, em relação a vinhos – única coisa que o pulha tinha de bom.

Seria impossível que Villegaignon não notasse de imediato a presença estonteante da martiniquenha de pele escura, brilhando quase negra sob o luar. Uma semi-deusa de olhos grandes, verdes como esmeraldas, cabelo castanho escorrido, rosto onde se destacavam o nariz afilado e uma boca carnuda, certamente saborosa como uma maçã fresca e vermelha. Mas foi discreto e cavalheiro, perguntando apenas o nome de mademoiselle.

“ – Dominique” – respondi, endereçando-lhe um sorriso que o faria engasgar, fato que eu atribuiria – devolvendo-lhe a gentileza – ao apimentado tempero da moqueca.

Acerquei-me de Villegaignon pelas costas e inclinando-me sobre seu pescoço para servir um pouco mais de vinho, deixei que meus seios roçassem de leve a nuca do francês. Foi a hora em que ele sentiu o cheiro do perfume da Duquesa Diana de Poitiers.

O homem ficou lívido e por breves segundos pensei que desmaiaria, achando que fosse uma alucinação olfativa. Teve que respirar fundo para se recompor – o que serviu para fixar ainda mais o odor adocicado da essência. Até aquele momento, eu não tinha idéia de que alguém poderia ser estuprado por uma sensação. Mas foi o que aconteceu com Nicolas Durand.

Enquanto me afastava em direção à casa – deixando-os mais à vontade em suas conversas – senti o olhar de Villegaignon acompanhando as passadas firmes e graciosas da mulher que o levaria alternadamente ao céu e ao inferno.

Pensei em Anchieta como Belzebu.

Para muita gente é difícil acreditar no tamanho do estrago que duas gotas de perfume francês podem fazer na imaginação de um homem isolado da corte, na distante França Antártica. Posso garantir que é considerável.

Menos de duas horas depois do ocorrido, Villegaignon alegando outro compromisso despediu-se do embriagado Jean de Coynta, retirando-se pelo caminho oposto ao que chegara. O calvinista bêbado caiu, babando na areia.

Como numa manobra sutil de abordagem, o corsário rodeou a casa.

Eu estava trazendo mais uma garrafa de vinho e dobramos a esquina da cozinha praticamente juntos. Não houve tempo de evitar o esbarrão.

A mão direita do corsário segurou meu seio esquerdo com a firmeza e delicadeza de quem segura uma pomba viva. Sem machucar e sem deixá-lo escapar. Na hora compreendi o que Anchieta quis dizer, quando confidenciou em meu ouvido que “o homem encontra a derrota através do amor”. Fiz valer os ensinamentos de Maria da Glória. A luz da lua varava a floresta, tão pálida quanto o comandante francês. Naquela noite, como em muitas outras, a índia Guaracy ficaria a ver navios.

Durante aquele ano fui a amante perfeita. Discreta, silenciosa e sempre pronta para o amor.

Com exceção da bela Collete – que era esperta e curiosa – e de Jean de Coynta, mon affaire com Villegaignon jamais foi percebido por ninguém. Nem mesmo pela feiticeira tamoio.

Neste aspecto o corsário também era um túmulo. Em outros, porém, era um canário e contava tudo que eu queria saber.

Claro que Guaracy achava estranhas as desculpas e o arrefecimento da paixão que já fora tórrida. No entanto, convenci a pobre índia que naqueles meses paí Nikolá não aparecia tanto porque enfrentava muitos problemas com o seu próprio povo – as  intermináveis e tediosas desavenças entre calvinistas e católicos. Ademais, ele completara quarenta e sete anos e –  que  me perdoe Bartolomeu de Gusmão – estava dobrando o Cabo da Boa Esperança.

A doce Guaracy não entendeu o sentido da minha última colocação.

Era mesmo complicado compreender o chiste em francês e não havia como traduzir para a língua geral. De modo que ficou o dito pelo não dito.

Todo mundo sabe que qualquer mulher, seja martiniquenha, francesa, portuguesa ou índia, fica ressabiada quando seu homem não comparece com frequência. A relação dos dois deu uma azedada e aproveitei para  colocar um pouco mais de lenha na fogueira. A única coisa que irritava, era me sentir obrigada a concordar com os conceitos duvidosos do jesuíta, colocados em minha cabeça durante conversas insidiosas, que o padre de vez em quando tinha comigo e que resultavam em frases tipo: “o homem encontra a derrota através do amor”.

Voltando ao que interessa. De um lado eu tinha Villegaignon, do outro Collete. Dois lindos canarinhos me soprando informações sobre os objetivos dos franceses: o número de homens e armas do Forte Coligny, as divergências cada vez mais acirradas entre os católicos e os seguidores de Calvino, o lugar perfeito para atacar a fortaleza da ilha de Serigipe, etc.

O bardo nojento ia repassando tudo para o padre José, que repassava por sua vez a quem interessar pudesse. No caso, a temível Companhia de Jesus.

Na outra ponta da linha, estava D. João III,  El-Rey de Portugal.

A rede de espionagem aumentara o prestígio e o poder da Companhia. Sonhei com Maria da Glória, perguntando-me se já havia pensado no que eu poderia lucrar com isso. “ – Você não se deixe enganar pelo velho Belzebu-de-batina” – disse-me no sonho.

Rezei um Padre Nosso e três Ave-Maria para minha mãe.

“O equilíbrio do universo depende sempre de uma conjunção de fatores astrais.” – dizia José de Anchieta, arrematando – “A  Santa Inquisição que não me ouça.” Mas não explicava direito o significado que desejava atribuir a isso. Alguns dos seus conceitos primavam por uma forte vaguidão específica, encontrada mais naturalmente entre o sexo feminino.

Bom. O padre mantinha secretamente um laboratório de alquimia onde – mais de uma vez – tentou me provar que a Terra era redonda. Às vezes ele brincava com fogo, em particular com as fogueiras do Braço Secular da Igreja. Mas eu adorava suas aulas de astronomia e acabei me familiarizando com as “conjunções astrais”. O que quero dizer é que, do jeito que as coisas estavam, com relação à situação do corsário francês, a história de equilíbrio do universo versus conjunção de fatores astrais se encaixava perfeitamente. No momento, os astros não eram favoráveis a Villegaignon.  E isto começou a se evidenciar quando ele abandonou definitivamente sua posição de líder imparcial, para lançar-se na arena das disputas confessionais.

O homem estava confuso e um homem confuso é um prato cheio para uma mulher esperta.

Confesso que o influenciei a virar a casaca para o lado católico – talvez por não gostar de Jean de Coynta, que andava para cima e para baixo com um tal João de Léry, historiador e teólogo calvinista, falso e perigosíssimo, ambos a caluniar Villegaignon.

Se existem dois tipos de escória abjeta que desprezo, são os traidores e os caluniadores. Eu mentia, claro. E enganava. Mas isto fazia parte da missão que estava cumprindo. Nunca levo certas coisas pelo lado pessoal.

Como estava dizendo – antes de desviar o raciocínio para falar sobre estes trânsfugas – a “Operação Adão e Eva” continuava seguindo com êxito. Villegaignon virou a casaca para o lado que eu indiquei e o pomo da discórdia passou a ser esta sua conversão temporária ao catolicismo.

Já relatei que o homem estava confuso, mas em última instância ainda era quem mandava na França Antártica.

Assim, na manhã de 6 de janeiro de 1558, Nicolas, o corsário travestido de Vice-Almirante da Bretanha, despachou os calvinistas de volta à França no “Jacobée” – uma nau carregada de pau-brasil, pimenta, macacos e papagaios.

Collete, pobre Collete, estava entre os expulsos. Pena. De certa forma, havia me afeiçoado a ela. Porém, parte dos meus planos incluía usá-la para atingir mais um dos objetivos da “Operação Adão e Eva”.

Collete era temperamental. Ao saber que seria deportada para a França, resolveu vingar-se de Villegaignon, contando a Guaracy sobre o caso que ele mantinha comigo há meses. Era tudo que eu precisava.

A índia ficou furiosa e deu o fora em paí Nikolá, no auge da confusão que se estabelecera. Era o início do fim. Os desatinos cometidos pelo corsário haviam-se multiplicado de tal sorte, que sua situação tornou-se insustentável. Nada mais lhe restava a fazer no Brasil. Já no ano seguinte partiria para o seu País, onde o esperavam as mortíferas guerras religiosas.

“O homem encontra a derrota através do amor”.

Eu escapei com Jean de Coynta, que mais tarde Anchieta encarregou-se de enforcar. Bem feito. Mas fazer a coisa pessoalmente foi um erro do jesuíta. Embora a Companhia tentasse abafar a história, espalhando que  o traidor Jean de Coynta terminara seus dias queimado nas fogueiras da Inquisição, a dúvida permaneceu.

Por conta disso o Apóstolo do Brasil perderia seu lugar no Panteão dos Santos Católicos.

Mais tarde, vim também a saber que Villegaignon ainda tentou reatar com a feiticeira, propondo levá-la para a França, o que quase conseguiu. Mas ela estava tão indecisa, depois da revelação de Colette, que acabou pondo tudo por água abaixo.

Guaracy relutou em embarcar até o último momento e acabou morrendo, flechada pelos próprios tamoios.

Villegaignon ficou tão arrasado que desistiu de vez das mulheres.

O que se segue agora não foi visto por mim, que a esta altura estava com José de Anchieta, gozando de merecidas férias e escrevendo poemas na praia. Porém, dou fé, baseada no meu conhecimento profundo sobre o que se passou naqueles tempos em Henriville e adjacências.

O relato é do historiador e escritor M.T. Alves Nogueira.

“A situação da colônia francesa era angustiosa. Os portugueses de São Vicente e Baía ignoravam a princípio o drama que lá se desenrolava: sabiam no máximo que Villegaignon tinha captado a simpatia dos selvagens, pois era tão condescendente para com eles como duro e cruel para com os seus.” (…)

“Com a morte de D. João III e como seu neto e sucessor, D. Sebastião, ainda fosse menor, a rainha-viúva, Catarina da Áustria, assumiu as rédeas do governo. Seu primeiro ato foi a nomeação de um novo Governador-Geral do Brasil. A escolha recaiu no doutor Mem de Sá, irmão do poeta Francisco de Sá de Miranda. Queria-se agora, com o emprego de todas as forças, destruir o estabelecimento francês e castigar desapiedadamente os indígenas por causa de sua aliança com o inimigo.

Portugal mandou reforços sob o comando do Capitão Bartolomeu de Vasconcelos, e um novo Bispo, Pedro Leitão, fez sua entrada solene na Baía, a capital da colônia, em novembro de 1559. Fortemente apoiado pelo Bispo e pelos jesuítas, o Governador reuniu todas as forças disponíveis: 2 navios grandes e 8 pequenos, que levavam 2.000 homens. E mandou a São Vicente o padre Manoel de Nóbrega, que de lá trouxe algumas embarcações fortemente tripuladas.

A 15 de março de 1560, Mem de Sá entrou no porto do Rio de Janeiro, postou canhões pesados na parte oeste da baía e, durante 48 horas atirou contra o forte Coligny, mas sem resultado; então mandou conduzir alguns canhões para o alto de uma colina, chamada Morro das Palmeiras e, para poder surpreender os franceses durante a noite, simulou uma retirada à luz do dia. Uns 30 franceses foram mortos, muitos feridos; os restantes lançaram-se em barcos para salvar a vida.

Assim se rendeu o forte marítimo de Coligny. Os invasores franceses, completamente esgotados, sem água potável e sem pólvora, não puderam oferecer maior resistência; somaram 74 indivíduos, além de alguns escravos, a que se acrescentaram depois 40, em parte fugidos do continente, em parte aprisionados de um navio então chegado.”

O que Alves Nogueira evidentemente não poderia saber, é que toda a estratégia portuguesa foi montada, baseada nas informações fornecidas através da “Operação Adão e Eva”, da qual participei como principal protagonista.

Através da influência do Padre José de Anchieta, a Companhia de Jesus recompensou-me regiamente. Mudei para Lisboa, onde comprei a Quinta que foi de meu pai, Martim Afonso de Sousa. E aqui vivo completamente entregue aos prazeres, que minha mãe Maria da Glória ensinou-me a perseguir.

O sátiro jesuíta me deixou partir. Mas não sem antes bolinar-me o seio.

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Shakespeare Era Um Dos Nossos

Uma pequena e necessária explicação.

Como é sabido, a maior história de amor absoluto da literatura ocidental poderia simplesmente não ter existido. O destino de Romeu e Julieta, deveria ser, provavelmente, uma comédia chamada Romeu e Ethel, a filha do pirata.

Não vou aqui entrar no mérito das razões que levaram Shakespeare a modificar a idéia inicial da peça. Isso não interessa. Meu foco está em outra direção.

Algumas folhas esparsas das primeiras anotações e rascunhos originais de Romeu e Ethel, a filha do pirata, chegaram ao meu poder seguindo um trajeto singular. Farei uma breve e imprecisa reconstituição deste caminho.

As anotações, parece, foram surrupiadas por um obscuro equivalente de contra-regra, colocado no teatro onde Shakespeare  mais tarde viria a estrear Romeu e Julieta, por um agiota a quem o Bardo devia dinheiro.

Tudo leva a crer que a intenção do agiota era utilizar partes do texto como notas promissórias, entregando-as ao jovem Will à medida em que este fosse restituindo o que era devido.

O destino porém, é caprichoso e imprevisível. Na corrida pelas ruas que separavam o teatro da casa do agiota, o ladrãozinho barato, sem querer, viu-se envolvido numa briga de rua. Na confusão, a bolsa que continha os primeiros rascunhos de Romeu e Ethel, a filha do pirata, desapareceu.

Curiosamente, os esboços foram parar nas mãos de um marujo, que sequer sabia ler. Este sujeito, de nome Michel, havia sido recrutado para fazer parte da tripulação de Bois-le-Blon, um obscuro corsário francês, sobrinho-neto de Villegaignon, que acreditava poder resgatar o sonho do seu tio-avô. Estávamos em 1590, a França Antártica definitivamente dera chabu e mais de trinta anos já haviam se passado desde que Villegaignon se fora do Brasil.

O Bois-le-Blon era muito desconfiado. Sempre revistava a bagagem de marujos novatos e acabou confiscando estes textos, que estavam no baú do tal Michel. O que para este não fez a menor diferença, pois o mesmo, como já disse, não sabia ler. Muito menos em inglês.

Depois de algum tempo vagando pelo Rio de Janeiro, sem conseguir nada, e enrabichado, dizem, com uma mulata chamada Martina da Glória, Bois-le-Blon voltou para a França. Mas acabou esquecendo os papéis na casa da gloriosa cabrocha, que os guardou como uma espécie de souvenir.

Rolaram os séculos, e eis-me aqui, em plena virada do milênio, de posse deste tesouro. A explicação é a seguinte: o manuscrito passou, de geração em geração, pelos descendentes da tal mulata. E um dos seus tatataranetos, cujo nome omitirei por motivos pessoais, tentou fazer da história o enredo da Mangueira para o Carnaval do ano 2000. Obviamente foi recusado.

Eu estava com um antigo namorado num boteco próximo à quadra da Escola de Samba quando, bêbado e puto da vida, o sambista veio não lembro porque, mostrar a papelada a ele, aproveitando para ofender todo o clã verde e rosa e o próprio finado Cartola. Certamente achou meu ex-namorado com cara de gringo e estava tentando descolar algum para comprar mais pinga.

Sou contra a profanação da memória de gente já falecida e tenho horror a bêbados inconvenientes. De forma que, para não pagar mico, convenci o ex a trocar a bolsa surrada do malandro por uma caixa de cerveja Skol, encerrando aquela conversa pastosa. E saltamos fora com a bolsa onde estava o arrazoado.

O ex, que coincidentemente se chama Michel, é francês e marinheiro de um cargueiro liberiano, acabou me presenteando com a bolsa, com certeza porque achava que não valia mesmo grande coisa. Deixei Michel na Praça Mauá (o navio dele iria zarpar nesta mesma tarde) e fui para casa.

Somente quando cheguei e esvaziei a bolsa, é que dei conta do que era aquilo. Minhas pernas tremeram. Eu estava diante de um manuscrito que, se a História tivesse seguido as linhas rabiscadas originalmente pelo velho Shake, o mundo estaria hoje privado da maior representação literária do amor, em todos os tempos.

Talvez, mais tarde, eu venha a vender estes originais por uma fortuna, dado seu valor histórico. Mas o fato é que, mesmo considerando que se trata de um esboço inicial, as partes da história que estão em meu poder não são lá esta coca-cola toda, literariamente falando. Porém, como estou escrevendo um folhetim sobre “pirataria” – que também não é lá grande coisa – resolvi tentar reconstruir (com base nestes rascunhos e de acordo com a minha imaginação) a primitiva idéia de William Shakespeare. Foi irresistível.

Ambientarei Romeu e Ethel, a filha do pirata no Caribe, por volta de 1670. Minha Verona será a cidade corsária de Port Royal. E os Montecchio e os Capuleto, com nomes trocados, serão dois clãs de piratas rivais.

Quero deixar claro que seguirei o que minha cabeça mandar e que esta será a livre adaptação de uma história que nem sequer foi totalmente escrita.

Portanto, não espere o leitor um novo Romeu e Julieta.

Assim, absolvo-me de qualquer cobrança futura, se alguém quiser me exigir a genialidade do Bardo de Stratford – on – Avon. O que escreverei é só uma história de amores corsários. Nada mais que isso.

Porém, farei de tudo para que seja uma viagem interessante.

Vou levantar âncora agora. Os que estão à bordo que me acompanhem. Como diria Browning em seu Chef perdu: “Shakespeare era um dos nossos!”

ROMEU E ETHEL, A FILHA DO PIRATA

 

Personagens

 

Sir Thomas Modyford Governador da Jamaica.

Personagem equivalente a Della Scala Príncipe de Verona.

Will jovem fidalgo de Port Royal, parente do Governador.

Personagem equivalente a Paris jovem fidalgo, parente do Príncipe.

Francis L’Ollonais chefe de um dos clãs de piratas rivais.

Personagem equivalente a Montecchio.

John Watling – chefe do outro clã de piratas rivais.

Personagem equivalente a Capuleto.

Romeu filho de Francis L’Ollonais.

Personagem equivalente a Romeu – filho de Montecchio.

Jack parente do Governador e amigo de Romeu.

Personagem equivalente a Mercucio – Parente do Príncipe e amigo de Romeu.

Henri – sobrinho de Francis L’Ollonais e amigo de Romeu.

Personagem equivalente a Benvolio – sobrinho de Montecchio e amigo de Romeu.

Edward – sobrinho da mãe, já falecida, de Ethel.

Personagem equivalente a Tebaldo – sobrinho da senhora Capuleto.

Padre Lorenzo – jesuíta.

Personagem equivalente a Frei Lourenço – franciscano.

Padre Juan – jesuíta.

Personagem equivalente a Frei João – franciscano.

Obeah – escravo antilhano.

Personagem equivalente a Baltasar – criado de Romeu.

Sansón.

Personagem equivalente a Sansão.

Gregory – pirata da tripulação de John Watling.

Personagem equivalente a Gregório – criado de Capuleto.

Alain – pirata da tripulação de Francis L’Ollonais.

Personagem equivalente a Abraão – criado de Montecchio.

Três músicos. Coro de piratas. Pedro.

Ethel – filha de John Watling.

Personagem equivalente a Julieta – filha de Capuleto.

Escravo jamaicano – uma espécie de guardião de Ethel.

Personagem equivalente à Ama de Julieta.

Os equivalentes às senhoras Montecchio e Capuleto foram declarados falecidos. Piratas e bucaneiros das duas tripulações, comparsas, bêbados diversos, guardas. Os personagens: Velho, Pagens, taverneiro e um oficial da guarda, simplesmente foram suprimidos por não terem nenhuma importância dentro dessa história.

A cena se passa em Port Royal. No Quinto Ato, um momento em Tortuga e outro na ilha de João Fernandes.

 PRÓLOGO

Coro de Piratas

Em Port Royal, paraíso dos piratas, corsários, bucaneiros e privateers, onde vai se passar esta história, uma velha rixa entre dois Capitães de navios-pirata, ambos impiedosos e  cruéis, rebenta de novo e tinge de sangue o mar do Caribe. Das entranhas destes dois inimigos nascem dois amantes, cuja funesta estrela e lamentáveis desventuras, a luta dos seus maiores há-de enterrar nos seus túmulos. As terríveis peripécias do mútuo amor selado pela morte e a raiva incessante de seus pais, que não há nada que faça diminuir senão a morte dos filhos, vão ser o assunto desta representação: se quiserdes, meus senhores, prestar a vossa atenção paciente, o nosso zelo há-de esforçar-se em remediar o que achardes insuficiente.

 

         N.A. Este prólogo, ligeiramente modificado, era original da história de Romeu e Ethel, a filha do pirata e continuou a ser, também ligeiramente modificado, o prólogo de Romeu e Julieta. O restante, fica por nossa conta.

ATO PRIMEIRO

Cena I

______

Cais de Port Royal.

 Coro de Piratas sai cantando “Fifteen on the dead man’s chest” e entram Sansón e Gregory, com espadas e garrafas de rum.

 

Sansón

Hic! Gregory, dou minha palavra de honra, se é que a tenho, que não são eles que hão de velejar em nosso brigue.

         Gregory

Com certeza, porque somos piratas, mas não escravos.

         Sansón

E sempre te digo que se nos fazem chegar o grogue ao nariz, conosco se hão-de ver.

         Gregory

Pois! Vê lá que tua cabeça não se despegue dos ombros…

         Sansón

Basta que apareça um dos marujos de  Francis L’Ollonais e eu…

         Gregory

A disputa é entre os nossos capitães e entre nós, que somos seus marujos.

         Sansón

Com certeza: porque entretanto quem tiver um átimo de força hão-de saber quem eu sou; isso tudo é carninha.

         Gregory

Sim, sim; peixe é o que tu não és; e se o fosses não passarias dum chicharro seco. Tira a tua espada que lá vem dois cães dos L’Ollonais.

         Entram Obeah e Alain. Puxam briga, discutem e combatem, trôpegos.

 

         Entra Henri.

 

         Henri

Trégua, trégua, insensatos. Embainhai as espadas, vós estais embriagados e não sabeis o que estais a fazer (Obriga-os a baixar as espadas)    .

         Entra Edward.

 

         Edward

Como é que tu estás de espada desembainhada no meio destes marinheiros sem vergonha ? Volta-te, Henri, a tua morte está na ponta da minha espada.

         Henri

Fiz o quanto pude para restabelecer a paz; mete a tua espada na bainha e ajuda-me a separar esta gente. Haja paz.

         Edward

Então tu desembainhas tua espada e falas de paz ? Detesto semelhante palavra, como detesto o inferno, como odeio todos os cães L’Ollonais e a ti. En garde, covarde (Batem-se).

         Entram diversos piratas das duas tripulações e se intrometem na refrega. Chega a Guarda de Port Royal, desancando tanto os homens de L’Ollonais, quanto os de John Watling.

 

         N.A. Pessoalmente eu estou achando que está ficando meio pastelão. Mas é uma comédia. Ademais, sempre achei o velho Shake meio pastelão. Bem que poderia desistir deste troço e vender os papéis. Vou precisar de grana mesmo… Já não dá mais para esconder a barriga. Aconteceu naquela noite do meu aniversário no Hispaniola. Eu o pirata e a nuvem no Tortuga Motel. Eu bêbada e o pirata sem camisinha. Taí…

Entram Sir Thomas Modyford, Watling e L’Ollonais.

         Sir Thomas

Oh! Inimigos da paz que tanto abusais dessas lâminas de aço manchadas de sangue. Homens! Feras! Apagai o fogo da vossa raiva perniciosa com os jorros purpúreos que brotam das vossas veias ? Querem ser pendurados no patíbulo de Gallows Point ? Por tua causa L’Ollonais, por tua causa Watling, já três rixas entre piratas, originadas em frivolidades tem perturbado a tranquilidade das nossas ruas e obrigado os cidadãos de Port Royal a deixar as suas graves e decentes ocupações, para brandir nas mãos suas espadas roídas pela a ferrugem da paz, para separarem o ódio que vos corrói. Por agora, que toda a gente se retire. Watling, vem comigo, L’Ollonais, depois do meio dia ireis à casa de audiências, porque quero que conheçais a nossa ulterior decisão. Só uma vez ordeno, sob pena de morte, que toda esta gente saia (Saem todos).

 

         N. A. Saiam todos, porque eu estou de mau humor. Ai, meu Deus. Juro que, em vez deste degladiar de piratas, eu gostaria de estar escrevendo alguma coisa mais romântica, tipo o amor da sereia pelo Capitão Bartholomew Sharp. Deve ser enjôo de grávida. Isto aqui n’algum momento vai ficar romântico, eu acho. Tem que ficar. Também não posso perder de vista que Romeu e Ethel é uma comédia. Até agora não dei nem uma risada. Talvez um sorrisinho leve, ao imaginar os modos afetados de Sir Thomas. Bem, de qualquer forma ainda estou no começo. Acho que vou pular as partes chatas e entrar direto no romance.

Entram Romeu e Henri. Romeu meio de ressaca.

 

Henri

Muito bons dias, primo.

Romeu

É assim cedo ?

Henri

Acabam de dar nove horas.

Romeu

Pobre de mim! Como as horas tristes são compridas! Não esteve aqui meu pai, que com tanta pressa se retirou ?!

Henri (Com o tom do Dr. Smith, de Perdidos no Espaço)

Esteve. Mas que desgosto é esse que alonga as horas de Romeu ?

Romeu

O desgosto de não possuir o que me tornaria as horas rápidas.

Henri

Temos paixão ?

Romeu

Perdido…

Henri

Perdido ?!

Romeu

Sim, por aquela por quem me perco!

Henri

Ai! Por que será que o amor, que tem tão terno aspecto, quando o experimentamos, converte-se em tirânico e brutal ?

N. A. Para um sobrinho de Francis L’Ollonais, um pirata impiedoso e cruel, estou achando este Henri meio mariquinhas. Porém, era o tom da época, eu suponho. Então vai assim mesmo. O que importa é que já estou entrando na parte romântica e isso alivia meu enjôo.

Romeu

Estou perdido; não sou eu quem está aqui; este homem não é Romeu; esse está longe daqui…

Henri (Rápido no gatilho)

Queres meu conselho: esquece-a.

Romeu

E ensinas-me como posso eu esquecê-la ?

Henri (Insinuante e fazendo uns trejeitos esquisitos)

Dá liberdade aos teus olhos: que olhem para outras belezas.

Romeu (Cortando abruptamente a do primo)

Adeus. Tu não podes ensinar-me a esquecer.

Henri (Num muxôxo)

Ou te pago esta dívida ou morro insolvente (Saem. Henri jogando a capa para trás como uma écharpe).

Cena II

________

Rua.

        

 

Entram John Watling, Will e um escravo (que entra mudo e sai calado).

         Watling

L’Ollonais e eu estamos condenados igualmente; não parece que seja muito difícil a homens da nossa idade bulharmos.

Will

Sendo como sois, piratas tão temidos, é mesmo uma pena que há tanto tempo vivais desassossegados. Mas Capitão, que me respondeis agora ao que primeiro vos perguntei ?

Watling

Não posso responder-vos senão que já vos disse, a minha filha ainda é muito criança, apenas tem quatorze anos; ainda falta que dois orgulhosos verões passem por sobre a sua cabeça para a julgar mais madura para o matrimônio.

Will

Mais novas do que ela já são mães felizes.

Watling

Sim, mas as que são mães antes, gafam-se rapidamente.

N. A. Menos de quatorze anos e já são mães felizes… Perto dessas me sinto uma velha grávida, aos vinte e três anos. E o pior é que ainda não me acho madura para o matrimônio. Com minha idade Helen já estava casada com Thomas Tew há dois anos e era dona do Jolly Roger, equivalente a ser dona do Studio 54. Eu aqui, pelejando nas letras. Depois que terminar isso vou trocar os papéis originais do velho Shake por muitos papéis verdinhos. Ah! Isso vou.

Entram Henri e Romeu.

 

         Henri

É no Jolly Roger a festa do Capitão John Watling. Lá, a bela Anny Bonny, de quem tu tanto gostas, costuma cear com todas as belezas admiradas de Port Royal; deves ir lá e observa-a sem opinião antecipada; compara-lhe o rosto com alguns que eu te hei-de mostrar; hei de convencer-te de que teu cisne não passa dum corvo.

Romeu

Irei, não para ver esta tal beleza, mas para gozar o esplendor da que eu adoro. (Saem)

 

Cena III

_______

 

Quarto de Ethel, no brigue de Watling.

         Entram Ethel e seu guardião, o escravo jamaicano.

 

         Escravo

Na minha alforria que posso dizer a sua idade sem lhe faltar uma hora.

Ethel

Tenho quatorze anos.

Escravo

Aposto os meus quatorze dentes, e para bem dizer só tenho quatro, se você tem quatorze anos. Quantos dias faltam para a festa de São pedro ?

Ethel

Uns quinze dias pouco mais ou menos.

Escravo

Pois seja; foi depois daquele terremoto de há onze anos que você se desmamou, precisamente neste dia.

Ethel

Faze o favor de te calares.

Escravo

Está bom, está bom. Estou calado. Deus te crie para a boa sorte! A menina era a mais linda criança que eu tenho criado: quem pudera viver até vê-la casada?! Era o que eu mais desejava.

         Ethel

Isso é uma honra que eu nunca pensei.

Escravo

Uma honra! Se não fosse eu a tua única ama havia de dizer que bebeu o juízo com o leite. Numa palavra: agrada-te o amor de Will ?

Ethel

Olharei para ele como ordenar meu pai, mas não sei se o olhar basta para fazer nascer simpatia.

Escravo

Bom, apronta-te. Teu pai e Will esperam-te no Jolly Roger. (Saem)

 

N.A. Sem querer interromper e já interrompendo, farei um parênteses para falar de uma coisa que tem e não tem a ver com esta história. No dia em que consegui os papéis, lá na Mangueira, teve uma hora em que me interessei pela conversa do sambista renegado. Foi quando falou sobre sua antepassada Martina da Glória, a mulata balzaquiana, caso de Bois-le-Blon. Disse que era, supostamente, filha de Villegaignon com uma mestiça (que depois vim a descobrir ser Marina da Glória, filha bastarda de Martim Afonso de Sousa e primeira espiã brasileira de que se tem notícia). Tendo a acreditar na origem dos papéis do velho Shake porque, desde pequena, meu avô plantou em minha cabeça o conceito de que bêbado não mente. Hoje sei que era um pretexto dele para tomar em paz umas cervejinhas e, quando chegava tarde, fazer minha avó acreditar em qualquer desculpa esfarrapada. Mas o conceito vingou em minha mente e nunca consegui me livrar completamente deste absurdo.

Cena IV

_______

 

Rua.

 

Entram Romeu, Jack e Henri, com cinco ou seis máscaras e gente com brandões.

 

Romeu

Então, faz-se-lhe o discurso de apresentação ou entra-se sem cerimônia ?

Henri (falso como um dobrão de três dólares)

A moda das cerimônias já passou. Não se lhe manda Cupido de olhos vendados com arco de Tártaro pintado de branco, afastando as senhoras diante dele como um gaiato encarregado de afugentar corvos.

Romeu

Dêem-me um brandão, não estou disposto a dançar; como sou sombrio, fica-me bem levar a luz.

Jack

Gentil Romeu, queremos que danseis.

Romeu

Se não estivesse loucamente ferido pela flecha de Cupido, voaria com as asas ligeiras, mas estou de tal forma atado que já não posso saltar mais alto que a sombria dor: eu sucumbo ao peso do amor.

Jack

Se o amor é brutal convosco, porque não o sois com ele ? Pagai-lhe com os mesmos dobrões; se vos fere, feri-o a ele e vencê-lo-eis. Uma máscara! (Mascara-se) Ora, aqui está uma máscara para cobrir outra.

Henri

Vamos, batamos, entremos; e logo que entremos todos, toca à dar a perna.

Romeu

Tive um sonho esta noite…

Jack

E eu também.

Romeu

Bom! Qual foi o teu ?

Jack

Que os sonhadores se enganam muitas vezes.

Romeu

Basta, basta, Jack; não tens dito senão banalidades.

         Henri

Rufem os tambores. (Saem)

 

         N.A. Adorei esta fala “os sonhadores se enganam muitas vezes”. Talvez eu seja do tipo. Já vejo meu livro vendendo horrores, noites e mais noites de autógrafos, eu disputada pelas editoras, enfim: a glória. Acho que preciso ficar mais atenta à verdade desta fala de Jack.

Cena V

_______

 

Na festa de John Watling, taverna Jolly Roger.

 

         Romeu (a um escravo)

Quem é aquela senhora que dá a mão àquele fidalgo acolá no fundo ?

Escravo

Não sei.

Edward

Se bem me lembro, esta voz deve ser d’algum L’Ollonais. Vai-me buscar a minha espada, ó pequeno. Será possível ? Este meliante atreve-se a vir aqui mascarado, para se rir e fazer escárnio da nossa festa ?

Watling

Que tens, meu sobrinho ? Por que estais assim zangado ?

Edward

É um L’Ollonais, um dos nossos inimigos, um celerado, que veio sem ser convidado para fazer pouco da nossa festa.

Watling

É o Romeu ?

Edward

É ele, este malvado do Romeu.

         N.A. Bom. Romeu fica na festa paquerando Ethel, enquanto seus fiéis amigos fazem uma rodinha, só de piratinhas, para contar piadas indecentes, impublicáveis de tão cabeludas. Coisa de adolescentes. Vão sair da festa sem levar sequer uma mulher, o que é bem feito. Romeu, que não estava na roda de piratas-mirins, pelo menos leva uma promessa.

         Mesa de Ethel, quatro da matina. Só ela e o escravo jamaicano.

 

         Ethel

Quem é aquele que não quis dançar ?

Escravo (Evasivo e com a língua pastosa)

Aquele é que não o conheço.

Ethel (Que só tem quatorze anos, mas não é boba)

Vai saber. Se é casado, o meu túmulo é o meu leito nupcial. (O escravo que se afastava, volta)

         Escravo (Preocupado com a própria cabeça)

Chama-se Romeu e é um L’Ollonais, único filho do maior inimigo da menina.

Ethel

Amar quem devo odiar! Não o conhecer para tão cedo o amar! E tão tarde para conhecê-lo ?

Escravo

É, já é tarde, filhota. Passa das quatro da matina.

Ethel

Que monstruoso amor me nasceu no coração! Amar um inimigo aborrecente!

Escravo

Que está aí a dizer ?

Ethel

São uns versos que aprendi com um dos meus pares (Vozes interiores chamam Ethel)

         Escravo

Já lá vamos, senão Helen Tew vos varrerá da taverna. Já se foram todos embora e nós estamos a sair na xêpa.

Coro de Piratas

 

         Agora no seu leito de morte agoniza o amor. Agora Romeu ama a quem o ama: os seus olhares cruzaram-se e enfeitiçaram-se. Mas como há-de ele desabafar a suas mágoas com a suposta inimiga ? E ela também, palpitando de amor, como exprimir numa entrevista tudo quanto sente por ele ? Só a paixão lhes dará força e tempo e ocasião, para cairem nos braços um do outro e o excessivo rigor fugir diante das excessivas delícias. (Sai)

________

 

ATO SEGUNDO

 

Cena VI

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         N.A.  Romeu e Ethel, a filha do pirata, iniciam um namorico escondido. Jurinhas de amor pra cá, jurinhas de amor pra lá, tudo não ia passar disso se não acontecesse um festival de cacas. Primeira delas: os pombinhos resolvem se casar secretamente e para tal contam com o apoio um tanto irresponsável do Padre Lorenzo,  jesuíta modernoso tipo Padre Marcelo Rossi; e do escravo jamaicano que não sabe onde está se metendo e não tardará a perder o pescoço por conta desta bobeira. As cenas I, II, III, IV e V, deste Ato, não vieram no meio da papelada original.

A cela do Padre Lorenzo.

 

Entram Padre Lorenzo e Romeu.

 

         Padre Lorenzo (pressentindo a merda que vai fazer)

Queira Deus que os sorrisos do céu baixem favoravelmente sobre este santo ato e que o futuro não traga desgostos de que haja arrependimento.

Romeu

Amém! Amém! Mas venham os desgostos que vierem, podem contrabalançar as alegrias que a vista da minha Ethel me dá dentro em breve ? Unidas as nossas mãos pelo santo sacramento, que venha a morte, assassina do amor, fazer o que ela quiser; já é bastante o poder chamar-lhe minha.

Entra Ethel, que na verdade é calvinista disfarçada de católica e há séculos não vai à Igreja.

 

         Ethel (Falsa como um dobrão de três dólares)

Boas tardes, meu santo confessor.

Padre Lorenzo

Romeu te agradecerá por mim e por ele, minha filha.

Ethel

E eu agradecerei por nós dois, pois que sem isso os seus agradecimentos não seriam pagos.

Padre Lorenzo

Vinde, vinde comigo: em breve poderei estar sós, quando a santa Igreja vos abençoar e faça de vós uma só e única pessoa.

__________

ATO TERCEIRO

 

Cena I

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         N.A. Segunda caca. Num ato tresloucado e francamente adolescente, os piratas-mirins dos clãs Watling e L’Ollonais resolvem se desafiar. Na calada da noite roubam dois navios dos patriarcas para fazer um pega – ou tirar um racha, como queiram – de Port Royal até Tortuga. No meio do caminho são apanhados por uma rápida tempestade de verão, muito comum no Caribe. No meio da tempestade – pista molhada, digamos assim – o navio de Watling, pilotado por Edward, faz uma manobra mal feita e se choca com o navio de L’Ollonais, pilotado por Romeu. Na batida, Jack cai no mar encapelado, vindo a falecer. Ato contínuo, Romeu aborda a embarcação de Edward, chamando-o de “barbeiro” e outras coisas impublicáveis. Há uma discussão entre eles; os dois desembainham as espadas e batem-se. Edward tomba morto pela espada de Romeu. Merda total. Os navios retornam à Port Royal com as bandeiras-pirata entre as pernas (para usar uma figura de linguagem). Romeu foge para evitar o flagrante que o condenaria à forca no patíbulo de Gallows Point. (Naquela época não tinha Febem, nem esta coisa de que menor é inimputável.)

Entram o Governador da Jamaica, John Watling, Francis L’Ollonais e mais pessoas.

 

Sir Thomas

Onde estão os celerados que começaram esta desordem ?

Henri (borrado de medo, com a voz de falsete do Dr. Smith)

Oh! Nobre Governador, posso expor todas as fases desgraçadas e tão fatal desastre; está ali no convés, morto pelo jovem Romeu, o homem que matara o vosso parente, o bravo Jack.

Sir Thomas

Quem foi que começou esta sanguinolenta questão ?

Henri

Edward, aqui estendido, morto às mãos de Romeu.

Watling

É um parente de L’Ollonais; a afeição arrasta-o à mentira; ele não diz a verdade: foram vinte os conjurados para este sinistro combate. Foram precisos vinte para matar um! Peço justiça! Deveis concedê-la, oh! Governador; Romeu matou Edward, não deve permitir-se que Romeu viva!…

         Sir Thomas

Romeu matou-o, mas ele tinha matado Jack. Quem me deverá pagar o valor do seu sangue precioso ?

L’Ollonais (tentando limpar a barra do jovem meliante)

Não deve ser Romeu, Governador, porque ele era amigo de Jack. O seu crime foi simplesmente ter executado o que a lei havia de decidir – a morte de Edward.

Sir Thomas

E por esta ofensa exilamo-lo imediatamente da cidade: eu mesmo sou vítima dos vossos ódios; o meu sangue corre por causa dessas ferozes disputas: que Romeu parta imediatamente, porquanto se for encontrado, essa hora será a última da sua vida. Levai daqui este corpo. A nossa vontade deve ser executada. A clemência para com assassinos é assassina também. (Saem)

 

         N.A. Como se pode ver, o bicho pegou. Ethel ainda não sabe do ocorrido, mas o alcoviteiro escravo jamaicano não tardará a fofocar.

Cena II

_______

Quarto de Ethel, na mansão dos Watling.

 

         Entra o escravo jamaicano com uma escada de corda.

 

         Ethel

Escravo! Que notícias há ? Que trazes tu aí ? São as cordas que Romeu te disse que fosses buscar ?

         Escravo

Sim, sim, são as cordas. (Deita-as no chão).

         Ethel

Que notícias me trazes tu ? O que é que te faz torcer assim as mãos ?

Escravo (Imitando Silvio Santos: “ele morreu, Lombardi!”)

Dia aziago! Morreu! Ele morreu! Morreu! Estamos perdidos! Que dia aziago! Fugiu! Morreu! Mataram-no!

Ethel (Histérica como uma fã dos antigos Menudos))

Que demônio és tu para me torturares assim ? Romeu matou-se ?! Basta que digas sim; Se tal palavra proferes e se os seus olhos estão fechados para sempre, se me dizes que lhes é noite e te farão responder sim, deixo de existir. Dize-me sim ou não. Estas bem simples palavras decidem da minha felicidade ou da minha desventura!

Escravo (Capricha no drama e no suspense, com secreta felicidade)

Eu via a ferida – via-a com meus próprios olhos. Que Deus nos proteja! Via-a no seu robusto peito. Um triste cadáver! Um cadáver ensanguentado: pálido, pálido como cinza, todo manchado de sangue, todo sujo de sangue coalhado! Até desmaiei! (Suprema ousadia. Dá uma cheirada nos sais de Ethel)

         Escravo (Continuando a encenação)

Edward! Edward! Meu melhor amigo, o cortês Edward! Esse honrado fidalgo! Nunca eu tivesse vivido para o ver morto!

Ethel

Que tempestade é essa que se desencadeia em tão contrárias direções ? Degolaram Romeu ? Edward morreu ? O meu querido primo ?! O meu senhor bem amado ? Que venha o juízo final. Quem há-de viver se esses dois morreram ?

Escravo (Cruel)

Edward morreu. Romeu foi desterrado. Romeu matou-o.

Ethel (Referindo-se a Romeu)

Coração de serpente oculto por entre flores! Jamais em caverna tão bela habitou dragão assim! Belo tirano! Angélico demônio! Corvo de penas de pomba! Cordeiro com raiva de lobo! Lobo! Execrável realidade debaixo de divina aparência! Justo injusto! Santo danado! Nobre infame! Ó natureza! Que tinhas tu que disputar com o inferno, quando instalaste uma alma de demônio no paraíso mortal de carne tão encantadora! Oh! Para que há de a malvadez habitar em tão magnífico palácio ? Nunca houve livro de texto tão vil com tão rica aparência.

         N.A. Com referência ao livro que estou escrevendo, faço minha esta última frase de Ethel (he he he).

Bem. E assim, praguejando contra o dito amor da sua vida, a filha do pirata, na falta de um cartão de crédito liberado, gasta seu rico vocabulário em impropérios de patricinha, mas logo se arrepende. Está meio confusa e já não fala mais coisa com coisa.

Ethel

E posso eu falar mal do meu esposo ?  Ah! Meu pobre senhor, qual há-de ser a língua que há-de acariciar teu nome quando eu, há três horas vossa esposa, o infamei ? mas por que foste assim mau, que mataste meu primo ? Este vilão do meu primo quereria matar o meu esposo! (E para o escravo) Leva essas cordas; pobre cordas fostes enganadas, vós e eu. O meu amor foi desterrado! Tinha-vos para lhe servirdes de caminho para o meu leito virginal, morro virgem (O escravo revira os olhos, como que duvidando) e sou viúva!  Vou para o meu leito nupcial! A morte e não Romeu é que é a senhora da minha virgindade.

Escravo (Sonso, como se fora dono de um grande segredo)

Eu vou ter com Romeu para vos vir consolar. Eu sei perfeitamente onde ele está. Está escondido na cela de Padre Lorenzo.

Ethel

Oh! Traze-m’o aqui! Dá-lhe este anel e recomenda-lhe que me venha dizer o seu último adeus. (Saem)

 

Cena III

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Cela de Padre Lorenzo.

 

         Entra o escravo jamaicano.

 

         Escravo

Reverendíssimo senhor! Dizei-me, oh! Dizei-me onde está o senhor da minha menina, o senhor Romeu ?

Padre Lorenzo

Está ali, embriagado pelas lágrimas…

Escravo

Tal como ela.

Padre Lorenzo

Lamentável simpatia! Dolorosa conformidade de situação.

Escravo (Para Romeu)

Meu senhor, passaria aqui a noite inteira a enxugar tuas lágrimas; mas minha menina vos espera. Aqui tem o anel que ela me recomendou que vos desse. Não vos demoreis porque se faz tarde. (Sai)

         Romeu

Como se reanima a minha coragem com esta dádiva!

Padre Lorenzo

Parte, boas noites; foge antes que a guarda tome os seus postos ou foge disfarçado ao amanhecer. Vai para Tortuga no navio de Roche Brasiliano. Eu te mandarei notícias.

Romeu

Adeus. (Saem)

 

Cena IV

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         N.A. Esta cena também não está no meio da papelada, mas suponho que aqui, John Watling deveria armar o casamento de Ethel com Will. É. É isso aí.

Cena V

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Quarto de Ethel.

 

Romeu e Ethel levaram um papo de despedida. Já estão no final.

 

Ethel

Meu Deus! A minha alma está cheia de pressentimentos funestos! Estás-me a parecer tanto em baixo, que te vejo como um cadáver no fundo de uma tumba. Ou a minha vista me engana, ou tu estás tão pálido…

Romeu

Também a mim me pareces pálida; é porque os desgostos bebem nosso sangue. Adeus! Adeus! (sai)

 

N.A. Vou pular esta parte, que é meio triste. É a parte em que Ethel é informada que se casará com Will. Naquele tempo era assim: os pais informavam e pronto – casa, fia ! O casamento deverá acontecer numa quinta-feira. Estamos numa terça. Ethel então vai amadurecendo a idéia de dar cabo à própria vida. Essa parte não me atrai; e também não me sinto madura para o casamento. Enquanto isso vou tomar um café e volto para escrever o Ato IV.

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ATO QUARTO

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Cena I

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Cela de Padre Lorenzo

 

         Entram Padre Lorenzo e Ethel.

 

         Padre Lorenzo

Sei muito bem os teus desgostos, que fazem andar a minha cabeça à roda; sei que na quinta-feira deves estar casada como jovem fidalgo Will e sem que ninguém possa retardar isso.

Ethel

Não me digais, meu padre, que sabeis dessa desgraça e que não podeis remediá-la; se não me dais auxílio dizei-me que aprovais a minha resolução e neste punhal estará o meu remédio. Respondei-me com brevidade; ardo em desejos de morrer, se a vossa resposta não me der remédio.

Padre Lorenzo (Pensando: se esta louca se matar aqui, estou frito)

Basta, filha minha; antevejo um vislumbre de esperança. Há tempos atrás, uma feiticeira vodu antilhana, de nome Ezili Dantor, ensinou-me um troço que vem a calhar.

Ethel (Meia que surpresa)

Bode preto ? Galinha preta ? Bozó na encruzilhada ?

Padre Lorenzo (Ignorando as perguntas estúpidas da moça)

Vai para casa, finge-te alegre; consente no casamento com Will. Amanhã é quarta-feira; à noite vai-te deitar sozinha, não deixes que o escravo jamaicano fique por lá; toma este frasco e quando estiveres deitada bebe o líquido que ele contém; imediatamente um frio e letárgico humor percorrerá as suas veias; o teu pulso há-de parar, depois de perder a regularidade dos seus movimentos; nenhum sinal de respiração, nenhum calor, atestarão que vives; as rosas das tuas faces e dos teus lábios se mudarão em cinzas pálidas; as pálpebras se fecharão como quando a morte apaga a luz da vida; cada um dos teus membros sem flexibilidade nem liberdade, frios, imóveis, parecerão mortos; ficarás quarenta e oito horas debaixo dessa enganosa morte aparente e depois hás-de despertar como dum agradável sono. Agora, quando noivo for pela manhã para te acordar, achar-te-á morta: e então como de costume, vestida com o teu mais belo vestuário, o teu corpo no esquife aberto será levado para o mausoléu dos Watling. Neste entretanto e até que despertes, Romeu há-de receber o aviso do nosso estratagema; virá aqui: ambos espiaremos o teu acordar e nessa mesma noite te levará para Tortuga, no navio do pirata Roche Brasiliano. Este meio te livrará da vergonha presente, mas é preciso que não haja circunstância pueril, nem nenhum receio feminil faça tropeçar a tua coragem no momento da execução.

Ethel (Achando que o remédio é o Santo Daime)

Dai-me, dai-me esse remédio, e, não me faleis em medo. (Saem)

N.A. Como vimos, a intenção do ardiloso jesuíta é transformar Ethel num zumbi de rosto bonito; parece que ele não irá usá-la para nada; é só para ver se o feitiço funciona, coisa que ele não tem certeza. De qualquer maneira, fará tudo como ensinou a bokor Ezili Dantor. Se Ethel morrer, morreu. Se não, aí terá nas mãos uma arma poderosa, não se sabe ainda pra que. Padre Lorenzo capturará o ti bon ange da filha do pirata e o aprisionará numa jarra de vidro; e talvez leve o anjinho da guarda da menina para os seus superiores da Companhia de Jesus, o que certamente lhe valerá uma promoção ou a morte na fogueira. Mas esta última hipótese não passa pela sua cabeça. E o padre já não aguenta mais esta ilha cheia de piratas bêbados e fedorentos.

Cena IV

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Uma sala da mansão Watling.

 

         N.A. Pulei as cenas II e III porque também não vieram junto com os originais; e estou com sono e meio sem idéias para escrevê-las. É a gravidez, acho. Bem. Mas imaginemos que Ethel já tomou a poção vodu.

         John Watling chama o escravo jamaicano.

 

         Watling (para o escravo serelepe)

Vai acordar a menina; vai, ajuda-a a vestir. Eu vou conversar com Will. Despacha-te! Anda depressa! Avia-te! Anda, que o noivo já chegou! (Saem)

 

__________

Cena V

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Quarto de Ethel; a filha do pirata está estendida na cama.

 

         Entra o escravo jamaicano e se depara com a cena.

        

         Escravo

Olhai! Olhai! Oh! Dia desgraçado!

Entra John Watling.

 

         Watling

Então Ethel desce ou não desce ? Já chegou o noivo.

Escravo (Com o jeito Silvio Santos: “Ela morreu, Lombardi!”)

Está morta! Morreu! Está morta! Oh! Que desgraçado dia!

Watling

A morte que m’a roubou, para me fazer gemer, prende-me a língua: não posso falar…

Entram Padre Lorenzo, Will e músicos.

 

         Padre Lorenzo (Falso como um dobrão de três dólares)

Vamos, a noiva já está pronta para ir para a Igreja ?

Watling

Está pronta para ir e não tornar jamais! Meu filho! Na noite que precedeu o teu casamento, vei a morte roubar-te a tua noiva! É a morte quem te substitui, foi ela quem desposou a minha filha! Tudo pertence à morte!

Will (Num comentário infeliz)

E foi para isso que eu tanto ansiei por esta madrugada ?

Padre Lorenzo (Doido para capturar o ti bon ange de Ethel)

Vamos, senhores, retirai-vos aos vossos aposentos. Senhor Will, ide com eles. Preparai-vos para acompanhardes este belo corpo à sua última morada! (Saem Will, Watling e o Padre, este para ir buscar a jarra de vidro.)

         Primeiro músico

Podemos guardar os instrumentos e irmo-nos embora ?

         Escravo

Podeis, rapazes, podeis; bem vedes em que estado as coisas se encontram. O reggae mixou. (Sai)

        

         Entra Pedro.

 

         Pedro

Olá! Olá! Senhores músicos. Vamos ao reggae! Fazem favor, tocai “Lovely Heart”, se quereis que eu remoce. Vamos,  tocai “Lovely Heart”.

Primeiro músico

Não estamos em maré de tocarmos coisas tristes.

Pedro

Por que não ?

Primeiro músico

O que vai nos dar ?

Pedro

Não é dinheiro, não, mas uma tapona, meu gaiteiro!

Primeiro músico

Oh! Refugo dos criados.

Pedro

“Com tortura apunhala o destino

         E a alma nos vem trespassar

         Só a música de som argentino…”

Por que é o som argentino ? Por que é que a música tem o som argentino ? Vá; que respondeis a isto, Simão Cantarola ?

Primeiro músico

Ora essa! É porque o dinheirinho tem o som tão lindo…

Segundo músico

A música tem um som argentino, porque os músicos só tocam por dinheiro.

Pedro

Também não é mau. E vós que dizeis, Tiago Viola ?

Terceiro músico

Palavra se eu sei…

Pedro

Desculpai-me. Vós é que sois o cantor ? E então eu falo por vós: a música tem o som argentino, porque uns atrevidos como vós sois, andam sempre a tinir.

“Só a música de som argentino

         Bem depressa vem nos consolar.”

(Sai cantando)

         Primeiro músico

Oh! Que perfeito malandro.

Segundo músico

Enforcado seja ele! Vamos, entremos: esperemos os doridos, mas toca a jantar (Saem).

         N.A. O que será que o velho Shake queria insinuar com este trechinho dos músicos ? Será que o som argentino já tinha alguma coisa a ver com as Falkland/Malvinas ? Tem horas que me falta cultura e quando falta cultura alguma coisa acaba saindo errado. Vocês vão ter a prova do que eu estou dizendo, logo no começo do Ato Quinto.

P.S. Ingleses e argentinos tem uma velha rixa; tal como os Watling e os L’Ollonais. Mas todo argentino quer ser inglês. Êta, complexo de inferioridade! Eu sei um monte de piadas sobre argentinos. Desculpe, leitor (principalmente se você for argentino), esta nota nem cabe aqui. Depois vou tirar.

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ATO QUINTO

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Cena I

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Rua de Tortuga.

 

Romeu já está em cena. Entra Obeah, o escravo antilhano.

 

         Romeu

Notícias de Port Royal ? O que há, Obeah ? Não trazes carta de Padre Lorenzo ? Como está Ethel ? Como está meu pai ? Ethel, Ethel, como está ? Se ela está bem, tudo estará bem.

Obeah

Nesse caso tudo está bem, porque ela está bem. O seu corpo jaz no mausoléu dos Watling e a parte imortal da sua existência vive com os anjos! O padre capturou seu ti bon ange, o pequeno anjo guardião da filha do pirata.

         N.A. Romeu, que é analfabeto em vodu, não entende a mensagem em código que Obeah lhe passa. Pensa que sua amada finou-se. Não sabe que Ethel agora é um zumbi e que poderá reviver. O escravo ainda tenta explicar, mas o rapaz está transtornado e não quer ouvir; este será o seu erro.

Romeu

Isto é verdade ? Desafio-te, estrela funesta. Sabes onde  eu moro ? Vai falar com Roche Brasiliano; zarparemos imediatamente para Port Royal. (Saem)

         N.A. Romeu, como Verônica do Paulo Coelho, decide morrer: só que junto com Ethel. Compra um veneno n’O Boticário (que hoje vende perfumes) e parte para o cais onde Roche Brasiliano já está levantando a âncora do brigue para levá-lo à Port Royal. Viram o que eu queria dizer ? Romeu não tinha cultura sobre a religião vodu, entendeu tudo errado e ainda era impaciente; agora vai pagar pela burrice.

Cena II

_______

 

Cela de Padre Lorenzo.

 

         Entra Padre Juan.

 

         Padre Juan

Reverendo Irmão em Santo Ignacio de Loyola.

Entra Padre Lorenzo.

 

Padre Lorenzo

Esta voz deve ser a do irmão Juan. Sede bemvindo! Que novas trazeis de Tortuga? De Romeu ? Ou preferiu escrever-me ?

Padre Juan

Não me foi possível enviar tua carta a Romeu e tenho-a aqui: não houve portador por causa do medo da peste.

Padre Lorenzo (Falando como o Robin interpretado por Burt Ward)

Que desgraçado contratempo! Pela minha sagrada ordem! Essa carta era valiosíssima, continha coisas de grande e preciosa importância. Podem suceder gravíssimos acidentes por falta de entrega! Padre Juan, vai, vai-me buscar uma alavanca e traze-m’a imediatamente para aqui.

Padre Juan

Vou já. (Sai)

         Padre Lorenzo

Preciso de ir só ao mausoléu; daqui a três horas Ethel acordará. Há-de ralhar-me de não ter avisado Romeu, mas escreverei de novo para Tortuga e escondo Ethel na minha cela até que Romeu venha. Pobre corpo vivo, metido no túmulo dum morto. (Sai)

 

         N.A. Bem. Aqui a história muda completamente de figura. Romeu não chegará, depois narrarei porque. Ethel acorda, dá um esporro no incompetente jesuíta, mas não tem jeito. O padre ainda a esconde em sua cela por um tempo e escreve uma nova carta; porém esta nunca chegará a Romeu (mais adiante o leitor também ficará sabendo porque). Ao final e ao cabo de uma semana, percebendo que Romeu não virá mesmo, Ethel corta os cabelos, veste-se de homem; e assumindo a identidade secreta de Mary Read, embarca no navio do pirata John “Calico Jack” Rackham. Ethel, com o codinome Mary Read, acabará se tornando, senão a mulher mais amada, pelo menos a mais famosa mulher-pirata do Caribe. Sua participação nessa história, provavelmente, se encerrará por aqui. Tirando o do jovem amado de Ethel, o destino dos outros personagens não importará muito agora.

Vejamos o que aconteceu com Romeu.

No caminho entre Tortuga e Port Royal, outra daquelas tempestades tropicais, esta bem mais brava, atira no mar mais da metade da tripulação de Roche Brasiliano, inclusive o próprio, que virará um fantasma. Na tormenta, Romeu perde o vidro de veneno. O leme do barco quebrou-se, as velas rasgaram-se todas, de forma que o navio fica à deriva durante dias, indo parar nas costas da América do Sul. Romeu chora e lamenta sua sorte o tempo todo. Os piratas que sobraram, duros homens do mar, vão se enchendo daquela lenga-lenga e resolvem abandonar o rapaz numa ilha deserta, a ilha de João Fernandes, onde Romeu será encontrado anos depois, barbudo, pirado e fazendo artesanato para matar o tempo. Diz chamar-se Robinson. Um pequeno e revelador diário foi escrito por ele nesta ilha. Vejamos um trecho, o único que chegou até minhas mãos; e que confirma sua verdadeira identidade.

“Querido diário”,

 

         “Depois de sozinho nesta ilha, sem mais esperanças de encontrar Ethel, avistei um ser humano. Um silvícola alto e espadaúdo, que logo me chamou a atenção. Dei-lhe o nome de Sexta-feira. Notei que o rapaz era bonito e muito bem servido, o que imediatamente me fez lembrar de uma frase que, certa feita ouvi do meu primo Henri. Dizia-me ele, num momento em que eu pedia que me ensinasse como esquecer Ethel: Dá liberdade aos teus olhos: que olhem para outras belezas. Fiquei olhando para aquele pedaço de homem, nós dois sozinhos numa praia paradisíaca; e alguma coisa se acendeu dentro de mim.”

 

Sobre o destino final de Romeu e Ethel, a filha do pirata, há controvérsias, porque a história é por demais imprecisa. Uma corrente diz que Romeu ou Robinson, como ele insistia em ser chamado, foi encontrado dez anos depois por um navio-pirata. Os piratas, pensando que Sexta-feira era um canibal, liquidaram o silvícola, levando um inconsolável Romeu/Robinson para o navio. Depois de dias de viagem, não aguentando mais o chororô do rapaz, também ficaram de saco cheio e o atiraram ao mar, onde ele veio a falecer.

A outra corrente afirma que o navio que o resgatou era o de Mary Read/Ethel; e que depois deste encontro, ela, Romeu/Robinson e Sexta, foram terminar suas vidas em Paris, onde viveram felizes para sempre; consta inclusive que eles tiveram um filho. Pessoalmente – como sou uma romântica incurável e o meu estado interessante tem me deixado ainda mais sensível – prefiro este final. Não sei se o velho Shake concordaria, mas ele está morto e não pode dar a sua opinião. Portanto, meu caro leitor, – como diria um filósofo apresentador de um antigo programa da rede Globo – o final, você decide.

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Nós e o Fantasma

 Já faz um mês que Roche Brasiliano apareceu à noite no meu quarto e desde então minha vida se transformou numa loucura.

Eu estava no computador escrevendo este livro, quando senti um forte cheiro de tabaco e rum.

– Que estranho – pensei alto. E quase dei um grito quando senti a mão calosa pesar no meu ombro. Lá estava ele. Alto, louro, olhos verdes, camisa branca aberta no peito, pistola na cinta, brinco na orelha e um sorriso cínico bailando nos lábios.

Trabalhei demais hoje. – voltei a pensar, procurando conter o pânico – Nada disso está acontecendo, piratas só existem na minha imaginação e…

– Olá! – sua voz ecoou clara dentro do quarto e ele fez um gesto típico de quem está acostumado a dar ordens.

– Pode continuar. Não quero interromper agora – completou.

Indignei-me. Aquele produto da minha mente cansada me pregara o maior susto e ainda falava comigo em tom insolente. Segurei a onda.

– O que você quer ? – perguntei, correndo o risco de passar por maluca se alguém dentro de casa ouvisse a minha indagação.

– Corrigir certos fatos. – respondeu despreocupado, dando uns tapas nas botas de bucaneiro, o que encheu o quarto de poeira.

– Corrigir certos fatos. – repeti feito uma idiota, esfregando os olhos com os nós dos dedos.

– Isso mesmo. – confirmou, sentando-se à beira da escrivaninha e descansando o cotovelo sobre o monitor do micro. Respirei fundo.

– Você não acha que está sendo muito folgado, entrando no meu quarto sem pedir licença, aboletando-se na minha escrivaninha, invadindo minha privacidade e poluindo meu sacrossanto lugar com o pó das suas botas e este cheiro horroroso de tabaco e rum ? – fui perguntando devagar e frisando cada sentença com uma frieza desafiadora. Um tipo de arrogância que sempre me acomete quando me sinto ameaçada por algo que não conheço ou não espero.

– Quer perder tempo com as respostas às suas perguntas estúpidas, ou vamos direto ao que interessa ? – o sujeito cuspiu uma coisa escura e nojenta dentro da minha lixeira.

Aquilo me desconcertou.

– Vamos ao que interessa. – respondi automaticamente.

– Neste livro aí, você está pondo em minha boca palavras que eu jamais pronunciei e distorcendo determinados fatos históricos da minha vida, sem a menor cerimônia. – Roche Brasiliano prosseguiu e voltou atrás para responder de maneira ofensiva duas das minhas perguntas anteriores – Aliás, reflita: qual de nós é o folgado ? Qual de nós invadiu primeiro a privacidade do outro ?

Fechei os olhos um instante. Pirei, meu Deus. Nunca mais voltarei ao mundo dos seres normais. Amanhã, quando meus pais acordarem, pedirei que chamem uma ambulância e me internem numa clínica psiquiátrica tranquila, de preferência longe do mar. Eles farão isso por mim, eu sei. E até que os enfermeiros cheguem explicarei tudo: direi para não se preocuparem, pois ficarei bem. O que aconteceu comigo não é culpa deles. Que sempre foram bons e compreensivos. Que me deram uma boa educação. Que as maldades que fiz com o meu irmão, quando éramos crianças, não foram de coração. Que  antes que a insanidade destrua completamente os meus miolos – patentemente moles – doarei em vida a meu adorado irmão, minha inestimável coleção de navios-pirata da Revell. A coleção inteira. Inclusive o bravo brigue Malintzin, que se encontra na caixa – dentro do baú antilhano – e que não tive tempo de montar. Que, mea culpa, reconheço, fui uma adolescente-problema, porque em vez de ir para lugares saudáveis – tipo Hard Rock Café – conversar com gente da minha faixa de idade, inventava de ficar no quarto escrevendo estas porcarias de livros SOBRE PIRATAS QUE NÃO EXISTEM e que…

– Acabou ? – a voz do fantasma, com um acentuado sotaque, meio holandês, meio pernambucano, me despertou do lugar quente e confortável onde minha mente se instalara. Minha família, meu pai, minha mãe, Mac – meu cachorro bichon frisée – meu irmão e as coisas que eu colecionava.

E o filho da puta, pelo jeito estava lendo meus pensamentos!

– Vamos ao que interessa. – propus novamente, de maneira pouco original – Que fatos são estes ? Que palavras são estas ?

– Escreva aí: – ele disse. E foi imediatamente interrompido por mim.

– Escreva aí ? Escreva aí, o que ? Isto é uma obra de ficção, meu caro. – eu estava recuperando minha calma habitual – Meu livro! – sublinhei, como a cobra do Mowgli, ofí-di-ca-men-te – Escrevo o que quiser, quando quiser e como quiser.

– Deste jeito não vamos nos entender. – disse o pirata ou o que fosse, com o dedo perigosamente próximo do botão Delete. Notei que sua unha era escura, rachada e encardida. Dei um salto da cadeira giratória.

– Sem ameaças! – levantei e baixei imediatamente meu tom de voz, temendo que alguém acordasse e deparasse com aquela situação esdrúxula – Sem ameaças, marujo.

Ele hesitou um instante, parecendo ponderar sobre minha argumentação e afastou devagar o dedo do Delete. Respirei aliviada.

– Nada disso está salvo. – comentei, sem saber se ele entenderia o termo informático “salvar”. Sua expressão não acusou nem que sim, nem que não. Imediatamente dei um “Save”. – E deu um trabalhão para escrever.

– Mas, vamos lá! – continuei, com a voz estranhamente esganiçada e um alegre sorriso amarelo, falsa como um dobrão de três dólares – Vamos corrigir os fatos! Porém, façamos antes um acordo: eu corrijo, mas você está proibido de ler meus pensamentos.

O bandido desabou no meu sofazinho florido, depois de apanhar duas preciosas miniaturas de garrafas de rum cubano que eu guardava na estante e tomar de um só trago. Aquilo foi a primeira punhalada que tive que absorver.

Arrotou – e eu preferi entender este educado sinal antidiluviano como um “ok”, com referência ao nosso acordo.

Então começou:

“Meu nome é – fez um gesto de irritação e disse que não lembrava – conhecido pelos homens do mar como Roche Brasiliano. Nasci no Porto de Rotterdam, Holanda, no ano da graça de – fez outro gesto irritado e falou que também não lembrava. Aproveitei a oportunidade:

– Deve ser o excesso de rum. Io-ho-ho. – ri, sarcástica. Ele pareceu ter considerado minha interrupção no mínimo inoportuna, porque desdenhou a minha fabulosa presença de espírito, ignorando-me solenemente. Prosseguiu:

 “Desembarquei em Olinda, Pernambuco, no ano de 1670, para servir como bucaneiro de Maurício de Nassau e residi por longo tempo no Brasil. Naquela época, o país era um tédio e a concorrência de gente desonesta já era grande. De modo que, embora tivesse me afeiçoado às cachaçadas e às mordomias da Corte do Príncipe de Nassau, acabei me aborrecendo com o barulho dos maracatus de baque virado e resolvi partir para a Jamaica, onde me incorporei à tripulação de um navio pirata, tendo, mais tarde, me tornado Capitão desta mesma nau.” Que também não lembrava o nome.

Pedi licença um instante, dizendo que precisava fazer xixi, e fui dar uma “batida” pela casa. Felizmente todo mundo continuava dormindo.

Ao voltar, notei que o sujeito tinha devorado um pacote de cookies, que sempre me socorrem à noite, na hora da fome. Outra punhalada, desta vez pelas costas. Ainda comentou que eram melhores do que os insuportáveis “biscoitos de ferro” que as tripulações corsárias eram obrigadas a comer. Fingi que não ouvi. Ele seguiu em frente:

“No mar eu caçava particularmente os espanhóis – que até hoje odeio – e me tornei conhecido pela crueldade com que os tratava. Às vezes, quando enchia a cara – ressaltou, com um orgulho meio duvidoso, que aprendera a expressão encher a cara em terra brasilis, mas sublimei o comentário – corria rua acima, rua abaixo, batendo ou ferindo qualquer pessoa que encontrasse, mesmo que esta não opusesse nenhuma resistência.”

 Fiquei assustada com a violência das histórias de Roche Brasiliano, que estava me parecendo uma versão holandesa dos pit-boys cariocas. Mas sua narrativa foi me fascinando e quando me dei conta o dia já estava claro. Pior. Eram quase oito da matina. Pior. O sujeito não tinha desaparecido como um fantasma, tangido pela luz da manhã. Pior. Não parecia ter nenhuma intenção de desaparecer. Pior. Meus pais acordaram. Era muito. Desmaiei.

Meu pai abriu a porta do meu quarto para dar seu beijo matinal e ficou puto. Deu de cara comigo deitada de camiseta e calcinha no sofazinho florido e um cara vestido de pirata me fazendo respiração boca-a-boca. Fato este, só posteriormente esclarecido. O velho quase teve um treco.

– O que é isso ?! – bufou, furioso – Um baile de carnaval ?!

O forte cheiro de tabaco e rum que impregnara o quarto só serviu para piorar as coisas. Roche Brasiliano deu um salto e sacou a pistola, apontando diretamente para o coração do meu lívido pai.

– Posso explicar, senhor. – o bucaneiro falou.

Este incidente ocorreu há um mês atrás. Roche Brasiliano explicou o que rolara e o que não rolara, os dois ficaram amigos e agora passam horas juntos, contando piadas indecentes e gargalhando o tempo todo. Papai já faz planos de construir uma pequena adega e Roche o tem ensinado a preparar o churrasco num moquém, em francês, boucan – palavra de onde se originou o termo bucaneiro – que o meu antes lúcido genitor, acha “maravilha”.

O pirata (aqui uso a expressão no sentido mais pejorativo) é todo cheio de gentilezas com a mamãe. É só milady daqui, milady acolá, e ela baba… Até o meu irmão, que sempre considerei um fiel aliado, Roche conseguiu cooptar, presenteando o verme com um pequeno cachimbo do século XVII, que sabe-se lá que uso ele dará. Só Mac permanece incorruptível. Mas é apenas um cão. Felizmente não percebe que são ossos, aquelas tíbias cruzadas sob a caveira, que compõem a bandeira negra ditatorialmente hasteada na parede do quarto, no lugar onde, um dia, existiu uma gravura do Greenpeace com um delicado filhote branco de foca e a mensagem “Save us”.

Mamãe, que é fissurada em seriados de tv e sitcoms antigos, – e  tem, gravados em fitas VHS, pelo menos um episódio inteiro de coisas tipo: Papai Sabe Tudo, I Love Lucy, Jeannie é um Gênio, A Feiticeira, Guerra, Sombra e Água Fresca, Família Trapo, A Grande Família, Família Dó-Ré-Mi, Agente 86, Flipper,  Túnel do Tempo, Aventura Submarina, Os Intocáveis, Bonanza, O Homem de Virgínia, Roy Rogers, Rin-tin-tin, Missão Impossível, Perdidos no Espaço, Além da Imaginação, Nacional Kid, Os Invasores, O Agente da Uncle, A Ilha dos Birutas, Ilha da Fantasia, Havaí 5-0, Patrulheiros Toddy, Ultraman, Vigilante Rodoviário, Viagem ao Fundo do Mar, Zorro (os dois), e não sei mais quantos outros – diz, encantada, que a nossa família, agora, está parecendo com a do seriado “Nós e o Fantasma”. O único que, por incrível que pareça, ela não tem uma fita gravada.

Pronto. Minha linda família-de-comercial-de-margarina se transformou numa sitcom da década de 60 ou 70, sei lá. Alguém em sua casa lembra como era “Nós e o Fantasma” ? Se pelo menos era engraçado ? Não lembro porque tenho apenas dezoito anos. Sou da época em que as pessoas curtem Seinfeld.

Mas tenho que admitir que nem tudo me desagrada. O Capitão Roche Brasiliano –  meu personal buccaneer – não se torna visível para as visitas que recebemos, dá dicas ótimas para meu livro Amores Corsários e está fascinado pela camisinha, que ele chama de barrete sexual. Além disso, se diz prestes a convencer meus pais a colocar em nosso quarto uma cama de casal.

Não há a menor evidência de que eles vão barrar a idéia.

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Diabolique

 

Minha crença vem de longe, vem da África. Vem nos porões dos navios de escravos, cantando a tristeza que ainda hoje aflige tantos infortunados, que cruzaram o oceano sob o domínio da chibata e dos grilhões, até pararem num porto qualquer da América Caribenha.

Vem de Daomé, de Angola, do Congo e Senegal. Vem da Líbia, Etiópia e Madagascar. Vem dos Ibo, dos Nagô, dos Haussars, Caplaous, Mondungues e dos Mandinge. Tantos lugares, tantas tribos, tanta fé, agora espalhados pelas ilhas do Caribe, mas unidos por uma religião protegida pela sombra dos segredos.

Quem nasce no vodu aprende cedo que a alma de toda gente é composta de duas partes: um gros bon ange, o grande anjo guardião; e um ti bon ange, o pequeno anjo guardião. Enquanto dormimos, o anjinho da guarda sai do corpo para ver o mundo. É a hora em que eu, Ezili Dantor, La Sorcière, uma mambo  da escuridão, bokor das poções e dos venenos, “aquela que serve o loa com a mão esquerda”, aproveito para capturar os ti bon ange e prendê-los numa jarra de vidro ou numa garrafa de rum. Como faço isso e para que? Segredo.

* * * * *

Em 1660, meu povo não passava de seis dezenas de escravos Caplaous e Mandinge, atirados na costa de uma ilha desabitada das Antilhas. Nosso loa Agwé, protetor dos pescadores e marinheiros, estava zangado com os piratas franceses, porque iriam vender aqueles sessenta homens e mulheres como se fossem gado. A raiva de Agwé custou caro aos corsários. Juntando-se a outros dois loa – Shango, Senhor das Tempestades e Yamalla, a Rainha dos Mares – aquele espírito, para quem minha aldeia presta no dia de hoje suas obrigações, fez naufragar o bergantim de bandeira jolly roger. Nenhum pirata sobreviveu. Cinquenta anos depois, todos os Caplaous e Mandinge ainda estão aqui.

Já somos mais de trezentos, neste ano da graça de 1710, e nunca houve uma morte sequer nesta aldeia chamada Mawu.

Para meu pai, o hougan que lidera a vida de todos nós, hoje é um dia de sorrisos. Sua única filha, Ezili, completa dezessete anos e o pequeno barco do sacrifício ritual para Agwé, afundou suavemente com todas as oferendas, nas águas quentes do mar antilhano. O sacrifício fora aceito pelo loa. Um ano de fartura estaria por vir.

Após pedir saúde e boa fortuna ao nosso protetor, meu pai convocou a todos para voltarem em procissão pelo lado sul da ilha.

Era uma caminhada de duas horas, que iria abrir ainda mais o apetite dos homens de Mawu, para o banquete que os esperava na aldeia. Depois da primeira hora, ao dobrarem a Ponta Okô, meu pai e seus homens encontraram os restos de um navio destroçado pelos traiçoeiros recifes da perigosa ponta. O mar naquele ponto sempre foi mais rebelde, insuflado continuamente por ventos em que ninguém pode confiar.

Os homens correram pela praia, na direção da embarcação. E alguns, que nunca tinham visto um branco na vida, se assustaram com o corpo de cor diferente caído na areia. Um único sobrevivente. O primeiro homem branco a chegar àquelas costas, cinquenta anos depois que sessenta escravos, de uma África distante, trouxeram a vida para este pequeno paraíso das Antilhas.

Quando chegou à Mawu, Edward Teach era então um homem de trinta anos, aproximadamente. A barba negra já fazia parte do seu rosto. E assim como sua cor, foi motivo de curiosidade para os rapazes da tribo. As mulheres solteiras suspiraram e ocultaram seus sorrisos. Meu pai o curou, restituiu-lhe a saúde e deu a ele um lugar entre nós.

* * * * *

         O ano de 1711, como vaticinara Agwé, foi de saúde e boa fortuna. O branco aprendeu a nossa língua, caçou e pescou com os homens da aldeia e ganhou o amor de Ezili, a negra mais linda que seus olhos de estrangeiro já tinham visto. Mas o foco de Edward Teach jamais se desviou do mar.

         Neste mesmo ano eu iria me tornar mambo, uma sacerdotisa plena nos segredos do vodu. Eu, Ezili, que recebi de meu pai o nome da divindade que representa o amor, a beleza, a pureza, a mulher ideal e a lua. Ezili, a entidade mais amada da loa, esposa de Ogoum, Legba e Agwé. Ezili das cores rosa e azul. Ezili que influencia os romances e casamentos, a boa fortuna e a criação artística. Ezili cujo símbolo é o coração. Ezili, para quem seus devotos trazem, durante o ritual, oferendas de sobremesas, bebidas doces, champagne, flores, perfumes, velas e pombas brancas. Mas o comportamento da deidade que me empresta o nome é sempre seguido de lágrimas, devido a amores perdidos e a sonhos não realizados, quando a divindade ainda não havia deixado o plano material.

Eu, Ezili, filha de Damballah-wedo, hougan de Mawu, ainda sem saber que o futuro me tornaria a bokor Ezili Dantor – “a que conhece os caminhos da escuridão” – estava perdida de amores pelo pirata inglês.

Desde que findara o ano de 1711, quando me tornei mambo, meu pai não via com bons olhos os meus passeios com o branco que a tempestade jogara na praia de Ponta Okô, e que falava de um mundo que eu não conhecia, mas que me encantava. Havia razões para que Damballa-wedo tivesse seus receios. Eu estava destinada a me dedicar à vida de mambo, conduzindo e celebrando os rituais vodu de Mawu; o branco talvez um dia fosse embora, partindo meu coração; e havia algo que ainda preocupava o hougan da ilha: Edward Teach  por várias vezes tinha sido visto conversando secretamente com o velho Obeah, que fora banido da aldeia por praticar magia negra e se refugiara no coração da floresta, buscando escapar da censura dos verdadeiros devotos do vodu.

Obeah em seus rituais secretos, invocava sempre Baron Samedi, o mais poderoso membro da família Guédé e loa que representa a morte. A entidade que controla a passagem entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e que providencia informações sobre os que já partiram, embora ninguém houvesse ainda falecido, desde que os primeiros sessenta homens e mulheres chegaram à ilha, no distante ano de 1660.

Quando incorporava esta deidade, Obeah usava uma velha cartola sobre a carapinha branca, contava piadas indecentes, fazia gestos obscenos, fumava cigarros, comia vorazmente e bebia garrafas de clairin – o rum nativo – com vinte e uma pimentas dentro de cada garrafa. Esta era a bebida favorita de Guédé. O clairin  passara a ser também a bebida preferida do inglês Edward Teach, que a cada dia deixava crescer mais sua barba negra e ficava por longo tempo cismando com o mar.

Obeah, o velho e desbocado bokor de Mawu, estava ensinando o pirata branco a brincar com fogo. Parecia haver um pacto sinistro entre o bokor, o corsário e o loa. Meu pai, naturalmente, queria que eu ficasse longe disso.

Mas meu coração apaixonado se negava e eu iria continuar suspirando pelo homem de barba negra e olhar fixado no horizonte. Até o dia em que uma bandeira com a caveira sobre duas tíbias cruzadas, surgiu no alto do mastro de um navio que se aproximava velozmente da enseada. A aldeia ficou alerta. Velhos, mulheres e crianças foram levados para lugares seguros na floresta. Os guerreiros com suas armas prontas, se esconderam para espreitar a praia e os olhos de Edward Teach brilharam com uma ferocidade que eu nunca veria em outro ser humano.

Os piratas mandaram à terra um bote em busca de aguada. Certamente acreditavam ser Mawu uma ilha desabitada. Teach e meu pai foram recebê-los na areia. Ficamos olhando, de longe. Quando a quilha do bote tocou a praia, vi claramente o inglês e os corsários trocando algumas palavras.

Então algo diabólico e inacreditável aconteceu.

Edward Teach, como que possuído por uma entidade endemoniada, soltou um horripilante grito, rodopiou sua espada no ar e a abateu sobre o pescoço do meu pai.

A cabeça de Damballah-wedo, hougan de Mawu, rolou como um fruto na areia. O corpo desarticulado ainda fez alguns movimentos involuntários, antes de desabar como uma antiga árvore africana. Foi com horror que vi cair a árvore onde estavam fincadas as minhas mais profundas raízes.

Meu pai era a primeira pessoa a morrer na ilha desde que os sessenta escravos, poupados do terrível naufrágio de 1660, vieram dar na praia onde agora seu sangue jorrava.

Um homem que eu amava, assassinado por outro homem que eu amava.

Antes do meu olhar se encher de escuridão, pude ver o branco entrando no bote e se afastando mar adentro, a barba negra mais crescida do que nunca. Ao acordar, eu, Ezili, não era mais Ezili. Já me transformaraem Ezili Dantor.

* * * * *

          Ezili Dantor é a deidade que representa a vingança. Frequentemente cruel com relação aos desejos das mulheres, suas cores são o vermelho e o negro. Ela exige porcos em seus sacrifícios rituais e o seu símbolo é o coração atravessado por uma adaga. Do jeito que ficou meu coração, depois da morte de Damballah-wedo.

Os rituais do culto vodu Petro, ao qual pertence Ezili Dantor, tiveram origem na América Caribenha, onde as condições eram muito diferentes das de sua terra natal africana, Daomé, apesar das raízes dos ritos, danças e loa, remontarem às tribos do Congo e Ibo.

O culto Petro se desenvolveu, porque a vida tradicional e a estabilidade das tribos foram caotizadas. Vendo seus filhos violados pela brutalidade da escravatura, os deuses vodu não poderiam mais ficar em posição defensiva. Tiveram que atacar. Daí nasceram os loa Petro – espíritos da ação e agressão. Assim é a divindade Ezili Dantor, – violenta, exigente, feroz e objetiva – o espírito da mulher que me tornei. Uma guerreira que enfatiza a morte e a vingança, usando da mais cruel agressividade para com seus adversários.

Mesmo com uma adaga atravessada no coração não deixei pedra sobre pedra, até que Edward Teach pagasse com a própria vida pelo meu amor que se perdera e pela morte de meu pai.

Sete anos se passaram antes que a cabeça do pirata inglês rolasse pelo chão, numa morte muito mais hedionda que a de Damballa-wedo. Quando isto aconteceu, eu vesti a roupa cerimonial vermelha e os tambores vodu bateram fora do seu ritmo sincopado normal. No ritual, dancei e cantei freneticamente, sacrificando um porco negro, em agradecimento às divindades Ezili Dantor e Baron Samedi. Minha obrigação estava cumprida. Foi quando pude retirar a adaga que quase mortalmente ferira a mambo Ezili – a negra mais linda que as Antilhas já viram.

* * * * *

         Após o funeral do meu pai renunciei aos votos de mambo e me refugiei no coração da floresta.

         O velho Obeah me encontrou chorando à beira de um regato, o coração sangrando como uma ovelha sacrificial.

Nesta mesma noite ele invocou Baron Samedi – “o que providencia informações sobre os que já morreram” – e este lhe contou que a alma hougan  de Damballa-wedo ainda não descansavaem paz. Que durante sete anos ela ainda iria vagar, até que minhas obrigações fossem cumpridas.

No dia seguinte, Obeah começou o treinamento que me iniciaria como sorcière.

Um ano depois de morto seu hougan, os habitantes de Mawu se dispersaram. Aos poucos, começaram a construir barcos um pouco maiores que as canoas usadas para pescar. E, em grupos, foram abandonando a ilha e espalhando-se por outras localidades já habitadas das Antilhas e Caribe.

O velho Obeah e eu deixamos Mawu no último barco. Vagamos dias pelo oceano até que chegamos à costa do país que se chama Haiti. Foi onde fiquei conhecida como La Sorcière. Meu pai foi o único a ficar na ilha novamente deserta, onde sessenta escravos, milagrosamente salvos de um naufrágio, tinham vivido por cinquenta anos num lugar sem mortos.

Enquanto eu aprendia os caminhos da escuridão, o velho contou-me o que ensinara a Edward Teach. A maioria das revelações não passara de truques baratos, tais como enfeitar a barba com fitas coloridas e colocar fogos de artifício de queima lenta escondidos sob o chapéu, para surgir diante de inimigos envolto em nuvens de fumaça negra, criando uma imagem aterradora e diabólica.

Contou que certa noite o inglês o ameaçara de morte, exigindo que ele, Obeah, usasse magia negra para tirá-lo daquela ilha. O velho foi obrigado a invocar os espíritos e eles apareceram com toda a sua força maléfica. Teach fez então um pacto com Kafou, a mais sanguinária das entidades. A deidade que representa a escuridão da noite ,controladora dos demônios que trazem má-sorte, infortúnio e injustiça para o mundo, o tiraria de Mawu. Mas como pagamento, exigiria em sacrifício a cabeça do hougan Damballah-wedo.

Naquela noite, Obeah viu o branco ficar ainda mais branco, permanecer em silêncio e beber clairin até cair. Como Teach não pronunciara nenhuma palavra e nunca mais voltara a procurar o velho bokor, Obeah nunca soube se o inglês concordara ou não com a exigência da entidade. Até o dia em que a cabeça de meu pai rolou como um fruto na areia da praia.

* * * * *

Durante o tempo em que permaneci aprendendo com Obeah os segredos da magia negra vodu, os mortos nos informavam – através da invocação do Baron Samedi – todos os passos do inglês.

Edward Teach se tornara Barbanegra, o mais sanguinário pirata que já singrara os mares do Caribe. À bordo do seu barco, Queen Anne’s Revenge, um navio mercante de quarenta canhões capturado aos franceses, ele ganhara fama, tingindo o oceano com sangue exigido por Kafou – a diabólica entidade que o possuía como cavalo e o tomara como devoto.

Era o que me contavam os espíritos de suas vítimas, implorando à jovem bokor que utilizasse os poderes que lhe eram conferidos, para deter a escalada daquele terrível assassino dos sete mares.

Foi o que decidi, quando aprendi a capturar os ti bon ange de cadáveres recentes, para transformar mortos em zumbis.

Zumbis são corpos sem alma, criados pelos bokor, através de magia negra. Pelo fato de não disporem mais de suas almas, podemos chamá-los de volta à vida por um curto período de tempo e controlá-los perfeitamente.

Aqui, vou revelar parte dos segredos que compõem o processo de criação dos zumbis. Nós os criamos durante um ritual mágico, utilizando uma combinação de poderosas drogas e venenos secretos. A poção é absorvida pela pele do cadáver, produzindo o efeito necessário para que ele volte à vida.

Não direi exatamente de que se compõe esta poção. A receita, guardada zelosamente pelos bokor e sorcières durante séculos, não deve ser revelada.

Porém, posso contar que contém substâncias de variada toxicidade, encontradas em certos animais e plantas, incluindo a glândula de secreção de um tipo particular de sapo – o bouga – cinquenta à cem vezes mais potente que a digitalina e que contém um forte alucinógeno.

Na receita estão também ingredientes como: tarântulas, a pele de três sapos venenosos, restos humanos (se necessário, para criar efeito aterrador) e quatro tipos de peixe-pedra, que trazem dentro dos seus corpos a tetrodoxina, uma das substâncias mais venenosas do mundo.

Obeah morreu em 1718, quando eu já me tornara a mais poderosa bokor das Antilhas. Chegara a hora de Barbanegra pagar pelo assassinato de meu pai, sete anos antes. Ezili Dantor poderia então retirar a adaga do seu coração e voltar a ser apenas Ezili.

Nesta época fui chamada para tentar curar um jovem guerreiro, de nome Baka, mortalmente ferido durante a luta com um tubarão branco. Preparei uma poção secreta e a administrei no forte corpo do rapaz, paralisando-o e fazendo com que ele entrasseem coma. Depoisdisse à família que havia sido chamada tarde demais e que Baka não resistira ao ferimento, vindo a falecer.

Compareci em segredo ao funeral, sabendo que Baka estava consciente em sua morte e assistia ao próprio enterro sem que nada pudesse fazer. Quando os parentes se retiraram para chorar lágrimas na aldeia pude agir, criando meu instrumento de vingança.

Baka ainda não completara vinte e quatro horas de falecido. O tempo perfeito para capturar seu ti bon ange. O pequeno anjo guardião, preso numa garrafa de clairin, seria usado para controlar o zumbi. Em seguida cortei-lhe as unhas e um pedaço do cabelo, guardando-os em um ouanga, O próximo passo era aplicar um alucinógeno que chamamos “pepino do zumbi”, o que reviveria o cadáver. Assim, o fiz.

A criatura que seria usada para liquidar Barbanegra, ergueu-se da terra com uma parte do cérebro tão danificada que não poderia lembrar como era chamado antes, nem o nome da sua família. Explorando sua total ausência de personalidade humana, disse-lhe que se chamava Ogu Bodagris, que era meu escravo e que deveria me obedecer em tudo que lhe ordenasse. Coloquei em sua boca uma pequena quantidade de sal para que recuperasse o sentido da fala, da audição e despertasse seu instinto de retorno à cova, quando a missão estivesse cumprida.

Só então fui cuidar de outros preparativos.

Através de um complicado tráfico de influências que vou me abster de narrar, consegui que Ogu Bodagris fosse embarcado no H.M.S. Pearl.

O navio zarpara do porto de James River, comandado pelo tenente Robert Maynard para, por ordem do Governador da Virgínia Alexander Spotswood, capturar vivo ou morto “o conhecido salteador e pirata”.

O dia estava amanhecendo em Ocracoke Inlet, quando o tenente Robert Maynard deu a ordem de “fogo”. Os canhões do Pearl cuspiram suas balas na direção do navio inimigo.

Enquanto se preparavam para abordar o Queen Anne’s Revenge , os homens gritavam como loucos e tantos foram os gritos, que chegaram até o meu coração.

Na sangrenta e confusa ação que se seguiu, Ogu Bodagris ouviu Barbanegra gritar:

“Que minha alma seja maldita, se eu der ou tiver alguma misericórdia de vocês!”

Então Maynard atracou-se num feroz corpo-a-corpo com o pirata no convés do navio. Foi nesta hora que Ogu Bodagris cumpriu sua missão.

Naquele mesmo momento do tempo, eu cantava e dançava, frenética, no ritual para Baron Samedi e Ezili Dantor. O porco negro urrava de maneira lancinante quando o sangrei para o sacrifício.

Em Ocracoke Inlet, Barbanegra recebia vinte ferimentos de espada e cinco tiros de pistola, morrendo num mar de sangue, como o porco sacrificial.

A cabeça de Edward Teach, foi cortada, pendurada num dos mastros do Pearl e Maynard velejou de volta ao porto de James River, para receber uma recompensa de cem libras. Eu também recebera a minha recompensa: a alma do meu pai, o hougan Damballah-wedo, poderia agora descansar em paz em seu solitário túmulo na – para sempre perdida – ilha de Mawu.

 * * * * *

          Ogu Bodagris voltou para casa e me fez o relato que acabei de contar. Eu o conduzi de volta à sua sepultura, arranquei do meu coração a adaga de Ezili Dantor e cravei no coração do zumbi. Em seguida, abri a garrafa de clairin e libertei o ti bon ange de Baka. Sua alma pode enfim empreender a viagem ao loa. Eu, agora outra vez Ezili, volto a me dedicar às muitas obrigações de uma mambo vodu.

 

Glossário de palavras e expressões Vodu 

Bokor – Sacerdote que pratica a magia negra vodu. Espécie de feticeiro.

 Clairin – Espécie de rum nativo rústico encontrado no Haiti.

 Gros bon ange – O grande anjo da guarda.

 Hougan – Sacerdote vodu do lado “branco”.

Loa – Todo e qualquer deus do panteão vodu. A palavra também significa mistério na língua Yoruba. Devotos do vodu “servem o loa”.

Mambo – Sacerdotisa. Equivalente feminino do Hougan.

Ouanga – Amuleto mágico usado pelo bokor em trabalhos malévolos.

Petro – Deuses da escuridão. Do outro lado da balança do universo vodu estão as forças benevolentes de Rada.

“Servir com a mão esquerda” – Refere-se a quem serve os deuses do aspecto Petro, os deuses da escuridão.

Sorcière – O equivalente feminino do bokor. Feticeira.

Ti bon ange – O pequeno anjo da guarda.

Zumbi ou zombi – Designação do morto-vivo. O corpo sem alma criado pela magia negra vodu.

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Código de Conduta

Rhode Island, manhã de 25 de dezembro de 1695.

          Depois de doze anos este é meu primeiro Natal sem Thomas. Sentada na biblioteca desta confortável casa, ouço o gritinho de alegria da pequena Missy ao abrir a grande caixa cuidadosamente embrulhada em papel colorido. Mary, sua ama, surpreende-se com o tamanho da boneca movida a corda, que tem a altura de minha filha. De onde estou posso vê-las através da porta de carvalho aberta, presas a um instante de encantamento, que parece, durará para sempre.

         Vejo Missy como o futuro ao qual me lançarei, numa viagem sem volta. Estou com a pena suspensa no ar, diante de um bloco de  folhas de papel em branco, pronta para iniciar minha aventura de escrever. Ergo mais uma vez meus olhos para o futuro, antes de dar uma última olhada no passado. Este será meu presente para o pai de Missy Tew. Ele que agora só navegará em minhas lembranças. Mary puxou a corda da boneca, e tal como uma antiga caixa de música que se abrisse, deixo que velhos acordes saiam do meu peito.

         Tortuga Bay, 23 de dezembro de 1683.

          A música toma conta da Taverna do Tubarão Branco, a melhor e mais animada da ilha. Piratas de todo o Caribe comemoram aqui um bizarro Natal, cantando e entornando barris e barris de rum, dançando e apalpando mulheres como eu, que me chamo Helen e que sequer sei meu sobrenome.

         Foi um ano bom, de bem sucedidas pilhagens. Todos têm dinheiro e aproveitam a breve estadia em terra para gastá-lo conosco e com muita bebida.

Will Penn rodopia comigo saboreando a cintura dos meus dezoito anos e dançamos até que minhas faces se ruborizem de tanto calor. Então Will me leva para fora da taverna, batendo a porta com estrondo e deixando a música do lado de dentro.

É um belo homem, este Penn. Jovem e forte, queimado de sol, a pele de gosto salgado e um sorriso que me seduz. Estou feliz que tenha me raptado e conduzido em seu pequeno bote, remando silenciosamente entre os navios atracados na enseada.

Will faz parte da tripulação de Bartolomew Português – conhecido pela excessiva insolência e infinitos assassinatos e roubos que vem cometendo em toda a costa do Caribe – e está indo direto para o seu navio. Fico assustada com a ousadia, pois sei que os piratas tem um rigoroso código de conduta que não permite mulheres, nem sexo à bordo, punindo os infratores com a morte.

Will Penn, no entanto, afirma que hoje todos os homens do barco estão na Taverna do Tubarão Branco ou em outras de Tortuga, e não voltarão antes da alta madrugada. Que ficaremos no brigue, no máximo duas horas. Diz que isto seria impossível num dia comum. Mas é Natal, a tripulação festeja na ilha, e ele diz que gostaria de sentir um novo tipo de excitação ao abrir seu presente na cabina do Capitão. O sorriso tranquilizador de Will Penn apagou todas as palavras de protesto que eu conhecia.

Escalamos o brigue pela popa, subindo através de uma escada de corda que ele propositadamente havia deixado em lugar estratégico, antes de descer à terra. Realmente, não havia ninguém. Parecíamos estar num navio-fantasma. Aquilo fez meu coração acelerar e meu corpo se encheu de arrepios. Era esta a excitação da qual ele falara. Bebemos, fizemos amor na cabina de Bartolomew Português e foi incrível. Eu queria ser um presente à altura daquela aventura e dei a Will Penn tantos orgasmos que perdemos a noção do tempo. Extenuados e com uma boa ajuda do excelente rum da ilha, adormecemos.

          À bordo do brigue Revenge, 24 de dezembro de 1683.

          Já era dia quando acordei com um tapa no rosto. Will Penn estava sendo arrastado para fora e nunca me esquecerei do olhar de Bartolomew Português. Penn quebrara da pior maneira possível o duro código de conduta da pirataria, desrespeitando de forma ultrajante o capitão do Revenge, ao levar uma mulher das tavernas para a cabina de comando. Merecia portanto, mais que a morte.

Antes de ser trancada na cabina e desmaiar, ainda pude ouvir os berros do bucaneiro enfurecido, ordenando que o navio zarpasse imediatamente.

 O infeliz marinheiro foi, como era esperado, cruelmente torturado antes de ser enforcado no mastro principal da embarcação e anos depois, eu soube que seu corpo ficara dias pendurado, para servir como exemplo à tripulação.

 Bartolomew Português não queria deixar nenhuma dúvida sobre quem era, nem sobre sua autoridade, nem sobre a capacidade de fazer valer suas leis. Os infratores pagariam um preço alto pela tentativa de transformar em bordel um dos veleiros mais temidos dos sete mares.

          À bordo, meu destino não seria agradável. Como um hediondo presente de Natal, passei o dia sendo estuprada por não sei quantos homens, sem saber se sobreviveria à tanta selvageria.

E à noite, quando acredito que já estávamos em alto-mar, fui atirada aos tubarões.

          Enseada da Salvação, Ilha de Tew, 25 de dezembro de 1683.

          Não sei como, vim parar aqui. Quando abri os olhos na areia, achei que estava morta. E que talvez fosse assim o lugar para onde todos iam, ao passar para o outro lado do mistério.

         Só aos poucos recuperei a clareza. Graças à Divina Providência, estava viva e numa praia deserta, que semanas mais tarde iria batizar com o nome de Enseada da Salvação. Afora isso, sentia apenas muita fome e sede.

A grande vantagem de se ter dezoito anos, é que sempre estamos nos comportando como se fossemos invencíveis e imortais. Mas na circunstância em que me encontrava, este tipo comportamento deixa de ser imbecil e passa a adquirir uma importância capital. Eu tinha fome e sede, e fui em busca do que não me deixaria morrer.

 Andei horas em direção ao interior da ilha, até encontrar uma fonte de água límpida, evitando cobras e receando os macacos, que pulavam de galho em galho fazendo um grande alarido na mata fechada. Embora não tivesse achado o que comer, bebi daquela água vital como um bebê se alimentando no ventre da mãe. Eu ainda não nascera – pensei. Porém, minha nova aurora não tardaria.

Quando tive certeza de que a morte se afastara, deixei o cansaço se abater sobre meu corpo e dormi um breve, profundo e reparador sono sem sonhos.

Acordei com mais fome do que jamais tivera e caminhei até a parte alta da ilha, sem encontrar nada que servisse ao meu estômago. Tive medo de me servir de frutos nativos, que poderiam ser venenosos. E não havia pensado na possibilidade de comer raízes ou até mesmo insetos.

Ao chegar à parte mais elevada do morro, divisei na praia do lado oposto à que eu chegara, um quase invisível filete de fumaça. Sequer passou pela minha cabeça as histórias de canibais, que ouvira às dúzias em Tortuga.

Nem Tortuga cruzou meu pensamento. Para mim, a Taverna do Tubarão Branco havia deixado de existir.

Corri pela escarpa abaixo, o coração aos pulos, escorregando aqui e ali, e quando me encontrei na parte baixa aproximei-me cautelosamente da praia, afastando sem ruído a folhagem densa, para espiar através dela talvez a cena mais bonita que já vira em toda a minha vida: Thomas Tew, sentado na areia, assava seu jantar num boucan, com o sol vermelho e enorme se pondo atrás de sua figura solitária. As ondas do mar quebravam suaves, uma gaivota voava ao longe e não havia mais nenhuma interferência na paisagem.

Não sei quanto tempo fiquei ali, parada, enquanto o sol resistia na boca da noite. Só sei que eu estava nascendo naquela hora e chorei como um bebê.

Tão acostumado estava Thomas Tew à sua solidão, que não percebeu imediatamente minha aproximação. No dia seguinte, contou-me que pensara estar acometido de um tipo de delírio que atacaria os homens abandonados em ilhas desertas. Finalmente, disse que ao tocar minha mão sentiu que nascera outra vez. Eu disse que nós havíamos sentido a mesma coisa, quase no mesmo espaço de tempo. Mas isso foi depois, porque na hora ele deu um salto para trás, sacando sua pistola e apontando diretamente para o meu peito.

Estava longe porém, o dia em que eu iria deixar este mundo.

 Thomas Tew era, na ocasião, um homem de seus trinta anos, magro e musculoso e estava vestido com uma camisa branca de cambraia, calças pretas um pouco folgadas e botas negras de couro. A barba crescida caía bem no seu rosto – marcado por uma pequena, mas visível cicatriz próxima ao nariz – onde olhos negros e ferozes se escondiam sob as mais bem feitas sobrancelhas que eu havia visto. A testa e os longos cabelos de ébano, estavam protegidos por um lenço vermelho, que usava à guisa de bandana. Argolas de puro ouro enfeitavam-lhe as orelhas. Havia também um casaco negro caído sobre a areia.

De resto, usava um talabarte com fivela de prata, trespassado do ombro ao quadril, onde pendia sua espada. Embora mais tarde viesse a saber que fora abandonado na ilha possivelmente há mais de quatro ou cinco meses, fiquei com a impressão de que chegara naquele momento. Descansado, limpo, vestido para ir a um lugar agradável, talvez encontrar-se com uma mulher.

 Parada diante do homem ameaçador que me apontava a pistola, pensei no meu próprio aspecto: cansada, faminta, cabelos desgrenhados e duros de sal, vestido sujo e rasgado, sem sapatos ou nada que pudesse lembrar a mulher bonita e sedutora, que há menos de quarenta e oito horas eu achava que era.

Mesmo assim, sorri. E foi o que iluminou seu rosto. Não lembro de Thomas Tew ter dito alguma palavra. Apenas guardou a arma, tomou minha mão esquerda, fez-me sentar em frente a ele, foi cortando com sua faca lascas da carne que assava no boucan e servindo-me em folhas de bananeira.

Comi, acredito, como uma mulher das cavernas: sem sentir vergonha, sem levantar os olhos da comida, sem me importar se estava dura, salgada ou não, sem perguntar o que era – enquanto ele me observava não sei com que tipo de olhar. E quando acabei, a noite já chegara, pois o fogo se tornara mais vivo. Então acho que dormi imediatamente, porque não lembro mais de nada, a não ser de alguém cobrindo meu corpo com um casaco de bucaneiro.

Foi meu primeiro Natal ao lado de Thomas Tew. Daí em diante, todos os anos, ele repetiu o mesmo ritual, cobrindo-me com este casaco após a ceia, quando eu já estava pronta para mergulhar nos meus mais lindos sonhos.

 À bordo do brigue Margarita, setembro de 1684.

 Vivemos exatamente nove meses na Ilha de Tew, como eu a batizei, até sermos resgatados pelos homens do Capitão Bartholomew Sharp. Durante este tempo, Thomas me ensinou a ler, escrever e contar. Aprendi também como os homens do mar se orientam pelas estrelas, as mesmas brilhantes estrelas que nos permitiram manter a capacidade de sonhar. Conheci a Bíblia, a história de Don Quixote e pude ler outros livros que pertenciam a Thomas e que ficaram com ele quando meu bucaneiro foi abandonado na ilha.

O brigue Margarita, parecia um navio construído há muito pouco tempo e ancorara na Enseada da Salvação em busca de aguada – como é conhecido o tipo de desembarque em que os marinheiros vão à terra – geralmente em ilhas ou costas desabitadas – para tentar conseguir comida e água, ou esconder o produto de uma pilhagem.

Bartholomew Sharp estava voltando à sua base em Port Royal, depois de um bem sucedido ataque ao galeão Salamanca. Como houvera baixas na tripulação, concordou em incorporar Thomas aos homens sob seu comando e também me levar, com a condição que não saísse de sua cabina. Eu indiquei lugares onde poderiam se abastecer de água e provisões e zarpamos na manhã de 25 de setembro. Thomas assumiu seu posto no Margarita e em cinco dias,com bons ventos, atracamos na baía de Port Royal.

 Durante a viagem, o Capitão Sharp foi gentil comigo perguntando-me se precisava de algo. Timidamente pedi pena, tinta e algum papel e ele ficou surpreso porque eu sabia ler e escrever. Perguntada se desenhava, neguei a habilidade, mas disse que sabia contar. Então ele achou que eu poderia ser útil e esteve ao meu lado durante dois dias, período em que  inventariamos juntos o butim tomado ao Salamanca. Este fato foi fundamental para o meu futuro. Contente em saber que o produto do saque chegara a três milhões de pesos, o Capitão Bartholomew Sharp decidiu pagar generosamente pelo meu trabalho e emprestar a quantia necessária para que Thomas e eu abríssemos um negócio que garantiria nossa subsistência em Port Royal.

Enquanto classificava as armas capturadas, os víveres, dinheiro e jóias, e anotava os números com minha caligrafia caprichada, falei sobre Thomas, sobre quem eu era e sobre o tempo que vivemos na ilha.

Thomas pertencera à tripulação de Basil Ringrose – que o Capitão Sharp conhecera e com quem compartilhara uma longa viagem. Juntos atravessaram o Istmo do Panamá, indo até o Cabo Horn, nos anos de 1680 a 1682. O marujo Tew fora recrutado depois por Ringrose, para a expedição subsequente a esta, em que o bucaneiro pretendia atacar Santiago do México. Tew era experiente e corajoso. E era de homens assim que o Capitão Basil precisaria.

Logo depois de se fazerem ao mar, um incidente veio alterar o destino de Thomas. Falsamente acusado pelo mestre do navio, de apostar à bordo dinheiro nos dados, o marujo Tew foi julgado culpado por infringir o código de conduta dos embarcados, apesar de não haver provas contra ele. A injúria se originou do ressentimento do mestre, por causa de discussões sobre tarefas, ocorridas no dia anterior.

Este incidente resultou no abandono de Thomas na ilha em que fomos encontrados pela tripulação do Margarita. Ele foi deixado lá com suas armas, alguma pólvora, balas, um machado, uma chaleira, suas roupas, instrumentos matemáticos, seu cachimbo e tabaco, a Bíblia e mais alguns livros.

Contei também minha história, criticando veladamente o duro código de conduta dos piratas. O Capitão Bartholomew Sharp, bem humorado, retrucou que, de alguma forma, o código foi responsável por unir nossos destinos. E acrescentou que Thomas tivera sorte, pois Basil Ringrose e parte de sua tripulação, inclusive o mestre que o denunciara, não sobreviveram a Santiago do México. Se tivesse prosseguido, o marinheiro Tew poderia estar entre os mortos no ataque e a história seria outra.

Em seguida, aquele gentil homem de olhar azul pediu-me licença, levantou-se, entregou-me uma bolsa onde estavam o meu pagamento e o empréstimo que resolvera me conceder. Agradeceu com um sorriso e retirou-se para a ponte de comando do seu navio.

 Muitas vezes eu iria rever Bartholomew Sharp antes de devolver-lhe o empréstimo, pouco antes do grande terremoto que arrasou a cidade de Port Royal, em 1692. Eu o reembolsei peso por peso, no dia em que ele rebatizava o Margarita, trocando o nome do brigue para Malintzin. Na manhã seguinte, eu e Thomas deixaríamos a Jamaica com destino a Rhode Island, à bordo de um dos seus maiores sonhos: nosso recém-construído navio Amity.

Foi a última vez que vimos o Capitão e  me ocorreu que eu nunca o vira tão feliz.

Mas a razão da sua alegria, como ele mesmo costumava dizer, faz parte de uma outra história.

 Port Royal, outubro a dezembro de 1684.

 Enquanto Thomas e eu estávamos decidindo o que fazer nesta nova cidade, pensei durante vários dias sobre aquela conversa que eu tivera com Bartholomew Sharp à bordo do Margarita. E sobre o código de conduta dos piratas. Thomas o acompanhou durante alguns anos em suas expedições de pilhagem e eu abri o Jolly Roger, que viria a ser a maior, mais frequentada e famosa taverna de Port Royal.

Foi aqui que floresceu o sonho de termos nosso próprio navio e a idéia de criarmos um código de conduta particular.

 Na manhã do dia 24 de dezembro de 1684, o brigue Revenge lançou sua âncora na baía de Port Royal. Na mesma noite, Bartolomew Português deixou de respirar.

Eu só tomei conhecimento do fato na noite seguinte após a ceia, quando Thomas me levou para a cama e me cobriu com seu casaco de bucaneiro.

Ele me contou o que acontecera, sussurrando carinhosamente ao meu ouvido que estava cumprindo as regras do nosso código de conduta pessoal.

Eu fechei os olhos e acho que dormi imediatamente, porque não lembro mais de nada, a não ser da música alegre do Jolly Roger invadindo o quarto, quando Thomas abria a porta e voltava para o salão.

Port Royal, 10 de janeiro de 1685.

A misteriosa morte de Bartolomew Português acabou sendo o grande assunto dos dias que antecederam a chegada do Ano Novo, naquele reduto rebelde de piratas, corsários, bucaneiros e privateers, no sudeste da Jamaica. Mas hoje, um outro evento o suplantaria.

No primeiro dia do novo e próspero ano de 1685, eu, Helen, estaria me tornando a senhora Thomas Tew. As esplêndidas bodas, comemoradas com uma inesquecível festa no Jolly Roger sepultaram qualquer assunto que não fosse o casamento.

Ao raiar daquele dia, sentada numa pedra do porto, li e reli inúmeras vezes o nome do navio que fora comandado pelo homem que, há pouco mais de um ano, havia mandado me atirar aos tubarões. Revenge.

Bartolomew Português dormiria eternamente com os peixes.

 Thomas Tew conquistara para sempre todo meu amor e respeito.

 Rhode Island, noite de 25 de dezembro de 1695.

 Pouco antes do Natal do ano passado, Thomas retornou a Rhode Island em seu navio Amity, com a fortuna de cem mil libras, após uma espetacular ação de pirataria. À esta altura já éramos proprietários de três velozes navios, dois deles entregues ao comando de reputados privateers.

Era 21 de dezembro e a pequena Missy nascia neste mesmo dia.

Thomas passou os seis meses seguintes nesta confortável casa, a brincar com a filha. E seu rosto ficava diariamente tão iluminado, quanto da primeira vez que eu lhe sorrira, na distante ilha de Tew.

Em julho deste ano, ele juntou-se a John Avery para uma expedição no Oceano Índico, onde provavelmente morreu no ataque ao Fateh Muhammad, no mês de setembro.

A noite ficou mais fria, me doem as mãos e o coração cansado. Seguindo nosso código de conduta, vou me cobrir com seu casaco negro de bucaneiro e acho que dormirei imediatamente. Pois não há mais nada que eu deseje lembrar.

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Captain Hooker

          Meu anúncio desta semana na seção de Acompanhantes d’ O Globo diz:

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Anny – Ruiva 1,75m, 19 anos, liberal, seios à prova do lápis. Educada, discreta, culta, carinhosa. Uma companhia realmente agradável. Damas, casais e cavalheiros. Atendo fantasias. English spoken. Habla español. 24 h. F. 9644-3462.Veja-me na Internet – http://www.escortgirls.com.br/anny

E lá estou eu, na foto sexy, vestida de pirata. Vestida é modo de dizer: uma bandana segurando parte do cabelo, tapa-olho suspenso à altura da testa, argola de ouro na orelha esquerda, adaga de cabo dourado entre branquíssimos dentes, botas corsárias de couro e casaco de bucaneiro, aberto de cima até em baixo, deixando meus invejáveis seios à mostra. No lugar onde deveria estar a calcinha, está uma mini-bandeira pirata, com a caveira sobre sabres cruzados, réplica do estandarte do navio de John “Calico Jack” Rackham.

Minha indumentária se completa com um cinturão grosso, atravessando diagonalmente o corpo, do ombro direito ao quadril, onde pende uma espada. Aponto para quem me vê no computador, com a mão direita empunhando uma pistola antiga, relíquia usada por volta de 1670, aproximadamente.

A foto, pela qual paguei uma nota, foi tirada em estúdio por um desses fotógrafos de moda famosos e, reconheço, ficou uma pérola de sensualidade. Ele usou um pano de velame como fundo, barris de madeira escura para que meu corpo se destacasse, uma meia-luz quente, velas acesas em lanternas da época, garrafas de rum e uma arca do tesouro finamente trabalhada, sobre a qual estou sentada com as pernas deliciosamente abertas. Eu entrei com um belo rosto, o corpo cheio de curvas e o olhar: surpreso, inocente, frágil. Como uma pin-up imaginada pelo ilustrador Blas Gallego, no livro “Treasured Chests 2”.

A fotografia – com a legenda “Anny Bonny, the Captain Hooker. Uma lenda que pode ir parar em sua cama.” – acompanhada de uma ficha técnica com minhas medidas, rende de 40 a 50 ligações diárias. Mas faço apenas um programa por dia. Poderia fazer mais. Dois, três, quatro… e ganhar muito dinheiro, pois cobro caro e em dólar. Porém, preciso de tempo para fazer outras coisas que gosto: acordar tarde em minha cama, ler novelas de Daniel Defoe, Robert Louis Stevenson, Lord Byron, Arthur Ransome e Rafael Sabatini. E assistir filmes antigos, tipo: “O Pirata Negro”, com Douglas Fairbanks, pai, e “Capitão Blood”, com Errol Flynn e Olivia de Havilland.

Quando viu o resultado das fotos, o fotógrafo falou que eu poderia ser modelo, se quisesse. Disse que estava parecendo Geena Davis em “A Ilha da Garganta Cortada” – que aliás, adoro – e propôs que eu fizesse com ele um ensaio, com o figurino igual ao que Geena usa no filme. Fiquei de pensar e acho que vou topar. Sou bonita mesmo, tenho fetiche por pirataria, então…

Quanto a ser modelo, tô fora. Gosto de ser puta, de abordar americanos – os galeões espanhóis da atualidade – no mar de Copacabana. Gosto de fazer isso sempre que não tenho programa à noite ou quando já ganhei meu dinheiro durante o dia. Nessas horas baixa o espírito de Anny Bonny, pirata irlandesa, amante de John Rackham ou “Calico Jack”, ativa por volta de 1720. Levo o gringo até o “Jolly Roger”, uma taverna aqui de Copa, embebedo-o com rum, pilhando seus dólares, divertindo-o e a mim mesma com histórias de amores corsários. Quando pergunta quem sou afinal, meu sorriso fica ainda maior:

“ – I am Anny Bonny, the famous, sexy and terrific Captain Hooker.”

Ele ri como um tonto, até porque já está embriagado. Eu prossigo:

“Bonny was married to a penniless ne’ er-do-well in the Bahamas when she met the swaggering Captain ‘Calico’ Jack Rackham and joined his pirate ship dressed as a man. When their ship was attacked by a British Navy sloop off the coast of Jamaica in 1720 Bonny and the fellow female pirate, Mary Read, drew their pistols and cutlasses and fought like demons. The rest of the pirates, drunk on rum, cowered in the hold. Like Mary Read, she escaped the death sentence at her trial because she was pregnant. Nothing is known of her subsequent fate.”

Mais ou menos o seguinte: Bonny estava casada com um malandro, nas Bahamas, quando encontrou o Capitão “Calico” Jack Rackham e juntou-se à tripulação do seu navio, vestida como um homem. Quando, em 1720, o navio – navegando próximo à costa da Jamaica – foi atacado pela Marinha Britânica, Anny Bonny e sua colega Mary Read, também pirata, sacaram suas pistolas e adagas e lutaram como demônios, enquanto o restante da tripulação, bêbada de tanto rum, covardemente se escondia no porão. Como Mary Read, Anny escapou da sentença de morte no seu julgamento, porque estava grávida.

Depois disso ninguém sabe informar o que aconteceu com ela.

Sempre achei fodona esta mulher e me emociono às lágrimas cada vez que conto a história. O americano não está nem aí, mas tenta me consolar e aproveito para saqueá-lo em mais uns dólares. Então emendo com relatos de orgias e imoralidades que aconteciam no reduto bucaneiro de Port Royal, usando a linguagem das cortesãs vis ou prostitutas baratas, mostrando como elas se comportavam nas tavernas, descrevendo em detalhes a maneira como faziam sexo. Às vezes abro o decote exibindo um seio e ele vai ao delírio.

No final da noite, eu o levo para um motel e dou-lhe de presente uma trepada esplêndida – como imagino que só Anny Bonny daria – pensando em John “Calico Jack” Rackham. Depois, espero que durma, pego na bolsa minha adaga de cabo dourado e corto-lhe a garganta.

Então repito o que Anny disse sobre “Calico”, ao vê-lo morto por seus captores, há trezentos e tantos anos atrás em Port Royal.

“ – Sorry to see him there, but if he had fought like a man, he need not have been murdered like a dog.”

Horas mais tarde o corpo do americano será encontrado, afundado em sangue como um galeão espanhol.

“Chegou aqui com uma mulher encapuzada, que depois foi embora.”

A meu respeito ninguém sabe informar mais nada.

          

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A Serpente Emplumada

1o de junho de 1692

 Bartholomew Sharp tenta me esconder um segredo. Neste ano de 1692, deixará de ser bucaneiro para transformar-se em caçador de piratas. Nada me disse, porque sabe que enquanto eu estiver viva jamais aprovarei que ele passe para o lado do Rei. Não que seja impossível evitar que tal coisa aconteça. Não o farei, apenas porque sei que ele o deseja. Meu Senhor é um homem faminto de glórias, poder e riquezas. Não pode contrariar sua natureza. Em sua cabeça já está decidido que se tornará, sim, um caçador de piratas. Mas é provável que não me revele nada até que esteja feito. Porém, não compartilhar comigo pela primeira vez um segredo, o deixa triste e impaciente.

Bartholomew Sharp me ama sem nunca dizer que ama. Sempre me traz a jóia mais preciosa quando retorna do mar e – tenho certeza – faz o que pode para que eu não me sinta sozinha e infeliz.

Mas, por conta deste segredo, meu Senhor tem me evitado. Passa seus dias calado, debruçado na sacada da villa, o olhar pousado sobre a calma da baía de Port Royal.

Sinto uma ternura furiosa quando o vejo deste jeito, o corpo musculoso e esguio em posição de falsa casualidade, para que não se note a tensão. Ele é como eu: quando passa muito tempo fora do mar sente-se incomodado por não estar em seu habitat natural. E, para piorar, há a impaciência da tripulação. Hoje completa um mês que o brigue não ergue as velas, as brigas nas tavernas se tornaram tediosas e correm rumores de motim.

Desde que retornou à Jamaica, com o porão abarrotado de especiarias, tabaco, açúcar, barris de vinho, carne, e quatro milhões de pesos em ouro e prata – saqueados do Isabel de Castilla – o navio permanece imóvel no porto, como que aguardando a resolução que irá mudar a vida do seu Capitão. E que ele pensa poder me esconder.

Bartholomew Sharp é um homem prático, que demonstra seu amor com atitudes. Nos próximos dias deverá renomear o seu brigue Margarita, que  passará a chamar-se Malintzin. Acredita firmemente que isto compensará sua culpa por me manter neste aquário e por não ter compartilhado comigo um segredo que deveria.

Esqueci de dizer:Malintzin sou eu – que ninguém se surpreenda – uma sereia raptada por este bucaneiro inglês de quem tenho falado todo o tempo.

Entre as minhas habilidades estão as artes do desenho, de adivinhar e de ler pensamentos. E o mais importante: o dom dos pressentimentos.

Descendo diretamente das deusas maias, mas adotei o nome Malintzin de uma moça asteca, que em 1519 havia sido presenteada – junto com outras dezenove jovens escravas – ao conquistador Hernan Cortés. Falo nahua, maia e espanhol, além do inglês, que aprendi com meu Senhor Bartholomew Sharp.

Em 1689, não havia mais um único marinheiro que acreditasse na existência de sereias. Até minha captura pelos espanhóis do galeão Rosario.

Fui apanhada pelas redes de pesca do Rosario na costa de Tabasco, em pleno território maia. A princípio, muitos dos marujos do galeão acreditaram que eu fosse uma alucinação. Seu comandante, porém, pensava diferente. Eu podia ser um delírio, mas feito de carne e ossos e lhe garantiria um alto posto na corte de Espanha, além de fama e fortuna para si e para seus mais remotos descendentes.

De forma que, ordenou ao carpinteiro de bordo a construção urgente e imediata de uma gaiola que pudesse de tempos em tempos ser baixada ao mar. Assim eu seria levada em segurança ao porto de Segovia e depois, ao Rei.

Não fosse o destino generoso comigo, talvez terminasse minha vida num circo itinerante, espantando camponeses no interior da Península Ibérica. Ou queimada como um monstro diabólico, numa das inúmeras fogueiras da Inquisição. Mas como disse, o destino foi generoso ao cruzar meu caminho com o do pirata a quem chamo de Senhor. O homem a quem devo a vida e ao qual devo pagar com paixão. É a este homem do mar que entrego todos os meus tesouros e revelações. É para mantê-lo vivo, livre e feliz, que ainda uso o dom do pressentimento. É para que ele alcance o que tanto deseja, que eu, enquanto existir, lançarei mão do poder que me foi dado por Kukulcan, a Serpente Emplumada: pressentir. E informá-lo dos meus pressentimentos como posso. Para que ele tenha a possibilidade de modificar seu próprio destino em vida, como um dia pode modificar o meu.

Já se vão três anos, desde que fui salva por este inglês de olhar azul, que hoje se debruça pensativo sobre a sacada de sua villa em Port Royal, que ainda me considera a parte mais preciosa do butim tomado ao galeão Rosario, que irá me presentear nos próximos dias rebatizando o seu navio com meu nome, mas que, inexplicavelmente, tenta esconder um segredo que já conheço.

Não sei até onde vai o poder de Bartholomew Sharp. O fato é que nestes três anos nunca ninguém ouviu falar a respeito do rapto da sereia. Nem na cidade, nem em outro porto qualquer do Caribe. Imagino que após liquidar a tripulação do Rosario, meu bucaneiro tenha ameaçado com mortes horríveis os marujos do Margarita, para assegurar-se do segredo da minha existência.

Mandou construir um grande aquário dentro da villa, o lugar onde fico quando ele sai para suas expedições. Sinto-me bem, aqui. Quando volta, na primeira noite me pega no colo, me leva à sua praia particular e nadamos felizes até alta madrugada. Enfeito seu corpo com colares de conchas e rimos como duas crianças brincando na espuma. Depois me coloca na areia, me beija  sempre com o mesmo amor, acaricia meus seios e alisa minha cauda prateada. E eu peço que me conte como foi seu tempo no mar. É a hora em ele abre a pequena arca onde cintila às vezes um diamante, às vezes um rubi, às vezes uma esmeralda e, em ocasiões mais raras, uma grande pérola negra.

De volta à villa, me descreve as costas por onde passou e de memória desenho os mapas mais perfeitos que nenhum navegador jamais possuirá. São assim os dias que passamos juntos. Barganho os mapas por informações sobre a vida em Port Royal, que bebo em sua boca, tão avidamente quanto ele bebe uma caneca de rum.

Port Royal é o paraíso dos bucaneiros e um importante entreposto para todos os navios mercantes que utilizam as rotas do Caribe. Os armazéns e as docas do cais estão repletos de tudo que pode ser comercializado nestes mares. Entre as quase seis mil e quinhentas almas que aqui residem, estão quatro ourives, dez alfaiates, treze médicos, vinte e cinco carpinteiros, cento e trinta comerciantes de porte e não menos de quarenta e quatro tavernas. O que – de acordo com meu Senhor – contribui para a má-fama que a cidade adquiriu, ao se tornar reduto de cortesãs vis e prostitutas baratas.

Foi ouvindo as histórias contadas pelos lábios de Bartholomew Sharp, que aprendi a amar esta cidade rebelde do sudeste da Jamaica. Às vezes ele me cobre com roupas e se arrisca, levando-me para passear de charrete pelas ruas de pedra do lugar. Posso ver o porto, a atividade febril do mercado, e me orgulhar ao ver o respeito com que é tratado meu Capitão. Quando a excitação cansa, ele me traz de volta para casa.

A villa onde vivemos fica bem no alto da colina que domina a cidade. Daqui pode-se ver toda a baía e uma vasta extensão de terra até Gallows Point, um pequeno promontório à leste, onde acontecem numerosos enforcamentos de piratas que, ao contrário de Bartholomew Sharp, não possuem a Letter of Marque – uma Carta Real que os autoriza a abordar e pilhar galeões espanhóis. O que faz com que desafiem a autoridade do Governador e por vezes sejam apanhados e executados no sinistro patíbulo de Gallows Point.

Foi numa história de pilhagem que meu destino teve sua rota alterada.

Estávamos no segundo dia da viagem. O capitão do Rosario gritou para que puxassem do mar a gaiola onde eu estava trancada e a pusessem no convés, amarrada ao mastro principal. Desta posição vi pela primeira vez a bandeira negra do Margarita hasteada no mastro da gávea e logo a seguir o brigue, cortando velozmente o oceano. Espantei-me com a casa alada que avançava pelo mar e com as cabeças humanas de cor clara e barbas.

Kukulcan, a Serpente Emplumada, estaria de volta como prometera há muito tempo atrás ? Viria em meu socorro o Deus que acena com um novo acesso à prosperidade em meio à paz e à felicidade ?

Vi o espírito de Montezuma se erguer na pele do bucaneiro, sua espada cintilar acima dos cabelos da cor do milho maduro e se abater sobre as nucas dos meus captores espanhóis. Vi sua surpresa e sua ternura ao abrir a porta da gaiola onde eu me encontrava e me tomar nos braços. Ainda posso vê-lo na ponte de comando, a exigir juramentos e ameaçar a tripulação do Margarita com mortes ainda mais pavorosas que a dos espanhóis, caso minha existência fosse revelada. Foi então que finalmente pude ler a mente do homem a quem chamo de Senhor.

De madrugada em sua cabine, beijou-me com uma ferocidade mil vezes maior que a de todos os conquistadores. Naquela noite, como em todas as que se sucederam, nada mais pude ler, adivinhar ou pressentir, enquanto ele me beijasse e acariciasse. O secreto estava somente em mim. Bartholomew Sharp, com seu corpo e seus instintos era mais claro que todo o mar do Caribe.

Foi na pequena cabine repleta de cartas de navegação, que surgiu minha paixão por mapas. Com base em seus relatos, os desenhava e entregava ao senhor dos mares do meu corpo, para que ele jamais se perdesse em suas múltiplas viagens. Ele me ensinou com paciência o inglês, a escrever e a ler, a interpretar cartas náuticas e às vezes, secretamente, me levava ao seu brigue. Eu lhe dei um colo onde pudesse deitar a cabeça tranquilamente, meus sorrisos, as adivinhações, meu amor e meus pressentimentos. Mostrei oráculos e profecias, compartilhei tudo o que sabia.

Durante três anos, em todas as horas – afora nas noites de amor, onde tudo se turvava de estrelas – pude ler os pensamentos de Bartholomew Sharp. Silenciosamente e com devoção o guiei com os mapas que eu fazia. E ainda faço isso. Mesmo agora, quando infantilmente ele tenta esconder o segredo que conheço.

2 de junho de 1692

 

Acordei com o desejo de mudar destinos. Houve urgência no amor e convulsões na noite que dormimos.

Hoje, meu Senhor está mais impaciente e não desprega os olhos da baía.

3 de junho de 1692

Antes que a claridade do dia iluminasse a baía de Port Royal, apressei-o para que partisse. Que se fizesse ao mar em quatro dias. Era o dom quem me dizia. Acostumado aos meus pressentimentos, ouvi da sua boca que iria, mas já no brigue de nome Malintzin.

6 de junho de 1692

Entreguei-lhe todos os mapas que ao longo dos anos havia desenhado e supliquei que os guardasse. E que de manhã zarpasse, com a primeira maré.

7 de junho de 1692

 

         Já estava claro quando o Malintzin levantou âncora e partiu em direção ao Golfo do México. O galeão espanhol Nombre de Dios estava pronto para deixar Acapulco com um carregamento avaliado em seis milhões de pesos. Meu Senhor se lançara à busca de um novo tesouro.

Do aquário na villa da colina, assisti a partida de Bartholomew Sharp, que se fora mais uma vez livre e feliz. Sob a forma de um apaixonado beijo, deixara em meus lábios o juramento onde prometia, que enquanto eu vivesse, ele continuaria bucaneiro. O Rei que esperasse.

Os olhos, ardendo pela noite passada em claro, acompanharam o brigue que já se distanciava a todo pano. O navio era outra vez a visão de Kukulcan, a Serpente Emplumada, que em sua qualidade de Deus relatava a restauração dos humanos depois do Quinto Sol – depois da destruição de um sol anterior – graças a invenção do milho, com o qual se faz a carne dos homens. Cerrei as pálpebras retendo a imagem dos cabelos cor de milho maduro do pirata inglês e finalmente pude adormecer.

Faltando vinte minutos para o meio-dia, o primeiro tremor do violento terremoto abalou Port Royal. E em seguida outros vieram em cadeia. Prédios começaram a cair na beirada nordeste da cidade. Armazéns e docas desabaram arrasados pela força de uma onda gigantesca, que praticamente varreu o lugar apanhando a população numa armadilha mortal. O chão afundou sob todos os pés. Duas mil pessoas morreram durante o terremoto e mais duas mil viriam a morrer numa epidemia de febre, nos dias subsequentes. Dois terços da cidade foram tragados pelo oceano. Nada restou de nossa villa na colina. Mas agora, Bartholomew Sharp não teria nada para esconder à Malintzin. Estava longe, a salvo de sua culpa e livre para passar para o lado do Rei.

Kukulcan, a Serpente Emplumada dos Maias veio me tomar pelas mãos. Juntos descemos ao mundo dos mortos com um mapa que eu havia desenhado, para ali procurar a ossada da humanidade precedente, a fim de que, triturados com milho e seu sêmen, desse nascimento aos novos seres de Port Royal.

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O Pirata, seu Tesouro e a Nuvem.

“FIFTEEN ON THE DEAD MAN’S CHEST/YO-HO-HO, AND A BOTTLE OF RUM!/DRINK AND THE DEVIL, HAD DONE FOR THE REST – YO-HO-HO, AND A BOTTLE OF RUM!”

Eu estava feliz porque era meu aniversário, tudo parecia alegre à minha volta e o Hispaniola era perfeito. Encalhado no centro da cidade, réplica quase fiel de um velho galeão travestido em caravela pós-moderna, o lugar fervia, cheio de gente bonita. Bar na popa, restaurante no convés, boate no porão, garçons bronzeados como marujos, modelos simulando escravas brancas dançando seminuas na gávea, o Hispaniola se firmara como o top do verão carioca. A embarcação era o paraíso dos neo-conquistadores, aventureiros, gente de espírito livre.

Eu estava feliz porque passava um pouco da meia-noite e completara vinte e três anos sentada diante de um homem com o dobro da minha idade, que me fazia única, contando suas viagens por um mundo fantástico. Ele abria o cardápio como se fosse um mapa do tesouro e me divertia com suas histórias sobre o Mar Tenebroso, amores corsários e civilizações perdidas.

Eu estava feliz com meu Sir Francis Drake porque sabia do orgulho dele em me ver como um diamante seu, em encantar-se com o colar de pérolas dos meus dentes, em acariciar com o olhar o veludo dos meus seios, em tocar o ouro dos meus cabelos com suas mãos de pirata embriagado diante de um valioso butim.

Ele estava feliz porque estava vivo e escapara de naufrágios seculares da vida. Eu estava feliz porque via meu Lionel Wafer navegando através dos meus olhos verdes e quentes como as águas do istmo de Darien; e porque naquela noite todos os garçons pareciam ocupados demais para nos servir.

Então emergi da viagem e vi que ela estava parada como uma nuvem sobre a  mesa e pareceu surpresa ao vê-lo comigo, mas nada disse. Nem ele. Meu John Rackham – conhecido como Calico Jack, por causa de suas roupas de algodão colorido – foi cortês. Pediu-me licença um instante e foi falar com ela. Ao levantar-se, sua tatuagem sangrava.

“Ex-mulher,” – concluí – “um navio-fantasma.” Uma nau, um bergantim, um brigue, um antigo galeão à deriva carregado de lembranças. Um polvo abissal, um monstro marinho, uma possível quimera.

“- Ela foi minha espada, meu arcabuz, meu veneno.” –  meu Woodes Rogers disse sorrindo, quando voltou. E abriu seu diário de bordo, iniciando a narrativa de uma festejada viagem de circunavegação.

“- Agarre uma garrafa de rum, Capitão!” – incentivei – “Vai ajudar a espantar os demônios.”

Yo-ho-ho. Eu estava feliz porque fazia vinte e três anos, porque tinha um pirata embriagado diante do seu tesouro e porque não temo nenhuma Anny Bonny, Grace O’Malley, Mary Read ou qualquer mulher-pirata que ouse singrar meus vastos oceanos sentimentais. Soprei a Nuvem que sombreara meus olhos-mar-do-caribe.

Um jantar de sonho com garçons de camisas listradas e cheiro de mar, meu Jean Florin exibindo sua conquista, falando sobre esmeraldas tão grandes que não cabiam na palma da mão. Algumas coisas realmente não tem preço. Não dá para pagar meu resgate com mastercard. Rimos juntos. Eu estava feliz.

Do lado de fora do Hispaniola a Nuvem esperava um táxi. Fui delicada na abordagem, ofereci carona. Recusou. Insisti. Ela aceitou. Aprendo rápido. Depois de horas embarcada com meu Roche Brasiliano – que em breve trocaria pela Jamaica a corte de Maurício de Nassau – chegara minha vez de comandar. Sorri cerrando os cílios devagar e, enquanto o manobrista trazia o carro, imaginei desfraldada a bandeira negra com a caveira sobre tíbias cruzadas e sonhei com a delícia de uma cama de nuvens.

Meu Bartholomew Sharp esconde um segredo. Em 1692, deixará de ser um bucaneiro para transformar-se em caçador de piratas. Sabe que isso eu jamais aprovaria. Então fica assim, calado. Olho para o seu rosto infantil e sinto uma ternura furiosa. Ele fica mais bonito quando está concentrado, dirigindo pela madrugada molhada. Segura o volante com firmeza, troca as marchas com precisão, consulta o velocímetro como a uma bússola. Pilota como se, ele – e apenas ele – soubesse sobre seu destino. Nessas horas, fica difícil imaginá-lo agarrado ao timão de um navio-fantasma.

Ela viu que eu estava feliz “– É meu aniversário” – eu disse. Não me deu os parabéns, mas comentou que lera os três livros do meu Robert Louis Stevenson. E que achava merecido seu sucesso como escritor de aventuras.

“- Você melhorou muito!” – ela falou, parecendo sincera – “Parou de escrever com a cabeça, descobriu prazer na emoção.”

Ele perguntou onde deveria deixá-la. Ela encolheu os ombros. Sorriu: “- Você já me deixou.”

Meu adorado Sir Henry Morgan, celebrado em baladas heróicas como o maior entre os bucaneiros, encostou o dedo suavemente num botão luminoso do painel. Um cd deslizou para o player. Billie Holiday veio juntar-se a nós.

Algumas vezes esse meu pirata é ao mesmo tempo tranqüilo e ameaçador como a baía de Tortuga. Em sua censura translúcida, meu Basil Ringose – ainda sem saber que morreria no ataque a Santiago do México – estava dizendo que eu não deveria ter feito o que estava fazendo. Mas eu estava feliz. Não deixaria que nenhuma nuvem toldasse meu horizonte. Eu a sopraria quando quisesse, quantas vezes achasse necessário. Voltei o olhar para o banco traseiro. Billie nos ignorava, distraída com as estrelas.

“- Nós vamos para a cama agora.” – sussurrei “– Quer ir junto?”

A Nuvem deu um quase imperceptível suspiro. Uma curva mais fechada fizera o carro derrapar de leve. As lindas mãos calejadas do meu William Dampier, acostumadas a tempestades na Austrália, mantiveram o controle do veículo.

“- Acho que ele já passou tempo demais com duas mulheres na cama.” – a Nuvem falou, meio vagamente. Em seguida, com imprudente sensualidade, despiu o casaco deixando os ombros à mostra, atirou a cabeça para trás e depois para a frente, cravando os olhos no espelho retrovisor.

No sinal vermelho, meu Edward Teach, conhecido pelo tratamento brutal que dispensava aos prisioneiros, debruçou-se sobre a direção; e talvez tenha ficado séculos ali. Talvez. O olhar fixo nas luzes do semáforo, imaginando se a alça do vestido da Nuvem escorregara pelo braço, se algum tremor lhe escapara dos lábios ao ver acender o brilho de neon do incêndio frio que se alastrava nos olhos de luxúria dos motéis.

Neon: “Tortuga Motel”. Acende. “Tortuga Motel”. Apaga. “Tortuga Motel”. Acende. Soprei: “– Entra!” – com a língua invadindo a orelha do pirata.

Gosto de motéis porque não é preciso arrumar nada quando a gente sai. Porque tudo é provisório. Porque os lençóis não evocam o cheiro de ninguém conhecido. Porque fico cercada de espelhos que tudo refletem e nada guardam. Porque tudo se apaga quando volto para casa e durmo com a minha alma, que nunca dorme em motéis.

No quarto sem palavras, cordas e ganchos foram jogados febrilmente enquanto nos despíamos. Desprenderam-se soutiens como velas sobre seios enfunados, afiaram-se desejos nos saltos do sapatos.

Meu doce privateer transmutou seu controle em selvageria. Brutal, usou  os dedos como adagas sobre os mamilos duros da Nuvem. Letal, lambeu-me as costas como um rastilho de pólvora queimando na flauta de minhas vértebras. Cruel, gritou ordens – como Edward Teach o faria – usando meias finas como se fossem correntes, imobilizando nossos pulsos, mantendo-nos à ferros.

Insano e impiedoso,  proibiu a fala, o choro e a clemência. Como Christopher Condent espalhando o tamanho de sua fúria, seguiu açoitando e humilhando, mostrando que trazia dentro de si toda a barbárie de Kheir-ed-din Barbarossa.  E continuou como um salteador, arrasando tudo que estava à sua volta, urrando até que sua voz se fosse, profanando e fluidificando corpos dominados, em agonia e êxtase. Até que parou, saciado. Em um minuto cessaram o rumor e os fragores da contenda. Ficaram os tremores, os suores e o silêncio coletivo, onde só se podia perceber respirações opressas e um barulho de mar.

Era uma vez uma menina feliz, com cabelos de ouro, seios aveludados e dentes de pérolas, numa cama de nuvens, entre a Nuvem e o Corsário do Rei. Era uma vez um tesouro, na ilha deserta em que um certo Robert Louis Stevenson se transformara. Era uma vez os diários de bordo de terrores dos sete mares: Sir Francis Drake, privateer entre 1567-96; Lionel Wafer, bucaneiro inglês em atividade de 1660 a 1705;  John Rackham, pirata inglês entre 1718-20, conhecido como Calico Jack; Woodes Rogers, privateer, por volta de 1700; Grace O’Malley, pirata irlandesa entre 1560-80; Mary Read, inglesa, e Anny Bonny, irlandesa, piratas e amantes de Calico Jack; Jean Florin, corsário francês em 1520; Roche Brasiliano, bucaneiro holandês que morou em Pernambuco e esteve ativo por volta de 1670; Bartholomew Sharp, bucaneiro inglês entre 1660-92; William Dampier, bucaneiro britânico entre 1679-1711; Sir Henry Morgan, bucaneiro inglês entre 1660-70; Basil Ringose, bucaneiro britânico entre 1679-86; Edward Teach, o Barbanegra, pirata inglês de 1716-18; Kehir-ed-din Barbarossa, corsário bárbaro entre 1500-46; William Kidd, pirata e privateer escocês, entre 1697-99; Christopher Condent, pirata inglês, cujo estandarte, a bandeira negra com caveira e tíbias, tornou-se o símbolo mais romântico da pirataria.

Era uma vez Billie Holiday cantando blues,  belos garçons bronzeados vestidos como marujos, o cheiro do mar, o tesouro do Capitão William Kidd, uma quimera, um bergantim, um brigue, um bar/restaurante/boate chamado Hispaniola, um antigo galeão espanhol abarrotado de lembranças naufragadas em rum, o Mar Tenebroso, um monstro marinho, um polvo das profundezas enroscando-se loucamente em suas seis pernas, e corpos, corpos extenuados num motel de nome Tortuga, com vista para a Baía de Guanabara.

Rolamos da cama de nuvens para uma poltrona. Eu, minha garrafa de rum e um cigarro. Sentei-me, cruzei as pernas, fiz desenhos imaginários no ar. Rabisquei com a fumaça um mapa do tesouro e um pirata inclinado sobre ele. Depois, uma nuvem no céu do corsário. Esperei que se dissolvessem.

” – Velhos piratas morrem na cama. – concluí.

Antes de ir para casa voltei, não lembro se para soprar ou acariciar a Nuvem. Estava bêbada. Era meu vigésimo terceiro aniversário, a luz da manhã dissipara os vestígios da batalha. Zarpei com a primeira maré. Os ventos conduziriam o pirata para um lado. E para o outro, a Nuvem. Cada um deles em busca de um porto mais seguro. Quanto a mim ? Bem, que eu saiba, nunca foram encontrados tesouros enterrados em quartos de motel.

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The Devil’s Mischief

In all those many golden, honey days, before the Fall, I, Lucifer, enjoyed the full pleasure of heavenly paradise. Lovely. Sublime. Grand. Glorious. More than you can imagine. So what did I, Lucifer, do to earn such anger and enmity from Him? What was so unforgivable that the only appropriate punishment was to have me tossed to the lava, to the flames, to the ice beyond the River Styx?

I WANTED TO BE AN AUTHOR.

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Vista do Mirante do Leblon.

Os guarda-sóis são as sardas da praia.

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