Uma pequena e necessária explicação.
Como é sabido, a maior história de amor absoluto da literatura ocidental poderia simplesmente não ter existido. O destino de Romeu e Julieta, deveria ser, provavelmente, uma comédia chamada Romeu e Ethel, a filha do pirata.
Não vou aqui entrar no mérito das razões que levaram Shakespeare a modificar a idéia inicial da peça. Isso não interessa. Meu foco está em outra direção.
Algumas folhas esparsas das primeiras anotações e rascunhos originais de Romeu e Ethel, a filha do pirata, chegaram ao meu poder seguindo um trajeto singular. Farei uma breve e imprecisa reconstituição deste caminho.
As anotações, parece, foram surrupiadas por um obscuro equivalente de contra-regra, colocado no teatro onde Shakespeare mais tarde viria a estrear Romeu e Julieta, por um agiota a quem o Bardo devia dinheiro.
Tudo leva a crer que a intenção do agiota era utilizar partes do texto como notas promissórias, entregando-as ao jovem Will à medida em que este fosse restituindo o que era devido.
O destino porém, é caprichoso e imprevisível. Na corrida pelas ruas que separavam o teatro da casa do agiota, o ladrãozinho barato, sem querer, viu-se envolvido numa briga de rua. Na confusão, a bolsa que continha os primeiros rascunhos de Romeu e Ethel, a filha do pirata, desapareceu.
Curiosamente, os esboços foram parar nas mãos de um marujo, que sequer sabia ler. Este sujeito, de nome Michel, havia sido recrutado para fazer parte da tripulação de Bois-le-Blon, um obscuro corsário francês, sobrinho-neto de Villegaignon, que acreditava poder resgatar o sonho do seu tio-avô. Estávamos em 1590, a França Antártica definitivamente dera chabu e mais de trinta anos já haviam se passado desde que Villegaignon se fora do Brasil.
O Bois-le-Blon era muito desconfiado. Sempre revistava a bagagem de marujos novatos e acabou confiscando estes textos, que estavam no baú do tal Michel. O que para este não fez a menor diferença, pois o mesmo, como já disse, não sabia ler. Muito menos em inglês.
Depois de algum tempo vagando pelo Rio de Janeiro, sem conseguir nada, e enrabichado, dizem, com uma mulata chamada Martina da Glória, Bois-le-Blon voltou para a França. Mas acabou esquecendo os papéis na casa da gloriosa cabrocha, que os guardou como uma espécie de souvenir.
Rolaram os séculos, e eis-me aqui, em plena virada do milênio, de posse deste tesouro. A explicação é a seguinte: o manuscrito passou, de geração em geração, pelos descendentes da tal mulata. E um dos seus tatataranetos, cujo nome omitirei por motivos pessoais, tentou fazer da história o enredo da Mangueira para o Carnaval do ano 2000. Obviamente foi recusado.
Eu estava com um antigo namorado num boteco próximo à quadra da Escola de Samba quando, bêbado e puto da vida, o sambista veio não lembro porque, mostrar a papelada a ele, aproveitando para ofender todo o clã verde e rosa e o próprio finado Cartola. Certamente achou meu ex-namorado com cara de gringo e estava tentando descolar algum para comprar mais pinga.
Sou contra a profanação da memória de gente já falecida e tenho horror a bêbados inconvenientes. De forma que, para não pagar mico, convenci o ex a trocar a bolsa surrada do malandro por uma caixa de cerveja Skol, encerrando aquela conversa pastosa. E saltamos fora com a bolsa onde estava o arrazoado.
O ex, que coincidentemente se chama Michel, é francês e marinheiro de um cargueiro liberiano, acabou me presenteando com a bolsa, com certeza porque achava que não valia mesmo grande coisa. Deixei Michel na Praça Mauá (o navio dele iria zarpar nesta mesma tarde) e fui para casa.
Somente quando cheguei e esvaziei a bolsa, é que dei conta do que era aquilo. Minhas pernas tremeram. Eu estava diante de um manuscrito que, se a História tivesse seguido as linhas rabiscadas originalmente pelo velho Shake, o mundo estaria hoje privado da maior representação literária do amor, em todos os tempos.
Talvez, mais tarde, eu venha a vender estes originais por uma fortuna, dado seu valor histórico. Mas o fato é que, mesmo considerando que se trata de um esboço inicial, as partes da história que estão em meu poder não são lá esta coca-cola toda, literariamente falando. Porém, como estou escrevendo um folhetim sobre “pirataria” – que também não é lá grande coisa – resolvi tentar reconstruir (com base nestes rascunhos e de acordo com a minha imaginação) a primitiva idéia de William Shakespeare. Foi irresistível.
Ambientarei Romeu e Ethel, a filha do pirata no Caribe, por volta de 1670. Minha Verona será a cidade corsária de Port Royal. E os Montecchio e os Capuleto, com nomes trocados, serão dois clãs de piratas rivais.
Quero deixar claro que seguirei o que minha cabeça mandar e que esta será a livre adaptação de uma história que nem sequer foi totalmente escrita.
Portanto, não espere o leitor um novo Romeu e Julieta.
Assim, absolvo-me de qualquer cobrança futura, se alguém quiser me exigir a genialidade do Bardo de Stratford – on – Avon. O que escreverei é só uma história de amores corsários. Nada mais que isso.
Porém, farei de tudo para que seja uma viagem interessante.
Vou levantar âncora agora. Os que estão à bordo que me acompanhem. Como diria Browning em seu Chef perdu: “Shakespeare era um dos nossos!”
ROMEU E ETHEL, A FILHA DO PIRATA
Personagens
Sir Thomas Modyford – Governador da Jamaica.
Personagem equivalente a Della Scala – Príncipe de Verona.
Will – jovem fidalgo de Port Royal, parente do Governador.
Personagem equivalente a Paris – jovem fidalgo, parente do Príncipe.
Francis L’Ollonais – chefe de um dos clãs de piratas rivais.
Personagem equivalente a Montecchio.
John Watling – chefe do outro clã de piratas rivais.
Personagem equivalente a Capuleto.
Romeu – filho de Francis L’Ollonais.
Personagem equivalente a Romeu – filho de Montecchio.
Jack – parente do Governador e amigo de Romeu.
Personagem equivalente a Mercucio – Parente do Príncipe e amigo de Romeu.
Henri – sobrinho de Francis L’Ollonais e amigo de Romeu.
Personagem equivalente a Benvolio – sobrinho de Montecchio e amigo de Romeu.
Edward – sobrinho da mãe, já falecida, de Ethel.
Personagem equivalente a Tebaldo – sobrinho da senhora Capuleto.
Padre Lorenzo – jesuíta.
Personagem equivalente a Frei Lourenço – franciscano.
Padre Juan – jesuíta.
Personagem equivalente a Frei João – franciscano.
Obeah – escravo antilhano.
Personagem equivalente a Baltasar – criado de Romeu.
Sansón.
Personagem equivalente a Sansão.
Gregory – pirata da tripulação de John Watling.
Personagem equivalente a Gregório – criado de Capuleto.
Alain – pirata da tripulação de Francis L’Ollonais.
Personagem equivalente a Abraão – criado de Montecchio.
Três músicos. Coro de piratas. Pedro.
Ethel – filha de John Watling.
Personagem equivalente a Julieta – filha de Capuleto.
Escravo jamaicano – uma espécie de guardião de Ethel.
Personagem equivalente à Ama de Julieta.
Os equivalentes às senhoras Montecchio e Capuleto foram declarados falecidos. Piratas e bucaneiros das duas tripulações, comparsas, bêbados diversos, guardas. Os personagens: Velho, Pagens, taverneiro e um oficial da guarda, simplesmente foram suprimidos por não terem nenhuma importância dentro dessa história.
A cena se passa em Port Royal. No Quinto Ato, um momento em Tortuga e outro na ilha de João Fernandes.
PRÓLOGO
Coro de Piratas
Em Port Royal, paraíso dos piratas, corsários, bucaneiros e privateers, onde vai se passar esta história, uma velha rixa entre dois Capitães de navios-pirata, ambos impiedosos e cruéis, rebenta de novo e tinge de sangue o mar do Caribe. Das entranhas destes dois inimigos nascem dois amantes, cuja funesta estrela e lamentáveis desventuras, a luta dos seus maiores há-de enterrar nos seus túmulos. As terríveis peripécias do mútuo amor selado pela morte e a raiva incessante de seus pais, que não há nada que faça diminuir senão a morte dos filhos, vão ser o assunto desta representação: se quiserdes, meus senhores, prestar a vossa atenção paciente, o nosso zelo há-de esforçar-se em remediar o que achardes insuficiente.
N.A. Este prólogo, ligeiramente modificado, era original da história de Romeu e Ethel, a filha do pirata e continuou a ser, também ligeiramente modificado, o prólogo de Romeu e Julieta. O restante, fica por nossa conta.
ATO PRIMEIRO
Cena I
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Cais de Port Royal.
Coro de Piratas sai cantando “Fifteen on the dead man’s chest” e entram Sansón e Gregory, com espadas e garrafas de rum.
Sansón
Hic! Gregory, dou minha palavra de honra, se é que a tenho, que não são eles que hão de velejar em nosso brigue.
Gregory
Com certeza, porque somos piratas, mas não escravos.
Sansón
E sempre te digo que se nos fazem chegar o grogue ao nariz, conosco se hão-de ver.
Gregory
Pois! Vê lá que tua cabeça não se despegue dos ombros…
Sansón
Basta que apareça um dos marujos de Francis L’Ollonais e eu…
Gregory
A disputa é entre os nossos capitães e entre nós, que somos seus marujos.
Sansón
Com certeza: porque entretanto quem tiver um átimo de força hão-de saber quem eu sou; isso tudo é carninha.
Gregory
Sim, sim; peixe é o que tu não és; e se o fosses não passarias dum chicharro seco. Tira a tua espada que lá vem dois cães dos L’Ollonais.
Entram Obeah e Alain. Puxam briga, discutem e combatem, trôpegos.
Entra Henri.
Henri
Trégua, trégua, insensatos. Embainhai as espadas, vós estais embriagados e não sabeis o que estais a fazer (Obriga-os a baixar as espadas) .
Entra Edward.
Edward
Como é que tu estás de espada desembainhada no meio destes marinheiros sem vergonha ? Volta-te, Henri, a tua morte está na ponta da minha espada.
Henri
Fiz o quanto pude para restabelecer a paz; mete a tua espada na bainha e ajuda-me a separar esta gente. Haja paz.
Edward
Então tu desembainhas tua espada e falas de paz ? Detesto semelhante palavra, como detesto o inferno, como odeio todos os cães L’Ollonais e a ti. En garde, covarde (Batem-se).
Entram diversos piratas das duas tripulações e se intrometem na refrega. Chega a Guarda de Port Royal, desancando tanto os homens de L’Ollonais, quanto os de John Watling.
N.A. Pessoalmente eu estou achando que está ficando meio pastelão. Mas é uma comédia. Ademais, sempre achei o velho Shake meio pastelão. Bem que poderia desistir deste troço e vender os papéis. Vou precisar de grana mesmo… Já não dá mais para esconder a barriga. Aconteceu naquela noite do meu aniversário no Hispaniola. Eu o pirata e a nuvem no Tortuga Motel. Eu bêbada e o pirata sem camisinha. Taí…
Entram Sir Thomas Modyford, Watling e L’Ollonais.
Sir Thomas
Oh! Inimigos da paz que tanto abusais dessas lâminas de aço manchadas de sangue. Homens! Feras! Apagai o fogo da vossa raiva perniciosa com os jorros purpúreos que brotam das vossas veias ? Querem ser pendurados no patíbulo de Gallows Point ? Por tua causa L’Ollonais, por tua causa Watling, já três rixas entre piratas, originadas em frivolidades tem perturbado a tranquilidade das nossas ruas e obrigado os cidadãos de Port Royal a deixar as suas graves e decentes ocupações, para brandir nas mãos suas espadas roídas pela a ferrugem da paz, para separarem o ódio que vos corrói. Por agora, que toda a gente se retire. Watling, vem comigo, L’Ollonais, depois do meio dia ireis à casa de audiências, porque quero que conheçais a nossa ulterior decisão. Só uma vez ordeno, sob pena de morte, que toda esta gente saia (Saem todos).
N. A. Saiam todos, porque eu estou de mau humor. Ai, meu Deus. Juro que, em vez deste degladiar de piratas, eu gostaria de estar escrevendo alguma coisa mais romântica, tipo o amor da sereia pelo Capitão Bartholomew Sharp. Deve ser enjôo de grávida. Isto aqui n’algum momento vai ficar romântico, eu acho. Tem que ficar. Também não posso perder de vista que Romeu e Ethel é uma comédia. Até agora não dei nem uma risada. Talvez um sorrisinho leve, ao imaginar os modos afetados de Sir Thomas. Bem, de qualquer forma ainda estou no começo. Acho que vou pular as partes chatas e entrar direto no romance.
Entram Romeu e Henri. Romeu meio de ressaca.
Henri
Muito bons dias, primo.
Romeu
É assim cedo ?
Henri
Acabam de dar nove horas.
Romeu
Pobre de mim! Como as horas tristes são compridas! Não esteve aqui meu pai, que com tanta pressa se retirou ?!
Henri (Com o tom do Dr. Smith, de Perdidos no Espaço)
Esteve. Mas que desgosto é esse que alonga as horas de Romeu ?
Romeu
O desgosto de não possuir o que me tornaria as horas rápidas.
Henri
Temos paixão ?
Romeu
Perdido…
Henri
Perdido ?!
Romeu
Sim, por aquela por quem me perco!
Henri
Ai! Por que será que o amor, que tem tão terno aspecto, quando o experimentamos, converte-se em tirânico e brutal ?
N. A. Para um sobrinho de Francis L’Ollonais, um pirata impiedoso e cruel, estou achando este Henri meio mariquinhas. Porém, era o tom da época, eu suponho. Então vai assim mesmo. O que importa é que já estou entrando na parte romântica e isso alivia meu enjôo.
Romeu
Estou perdido; não sou eu quem está aqui; este homem não é Romeu; esse está longe daqui…
Henri (Rápido no gatilho)
Queres meu conselho: esquece-a.
Romeu
E ensinas-me como posso eu esquecê-la ?
Henri (Insinuante e fazendo uns trejeitos esquisitos)
Dá liberdade aos teus olhos: que olhem para outras belezas.
Romeu (Cortando abruptamente a do primo)
Adeus. Tu não podes ensinar-me a esquecer.
Henri (Num muxôxo)
Ou te pago esta dívida ou morro insolvente (Saem. Henri jogando a capa para trás como uma écharpe).
Cena II
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Rua.
Entram John Watling, Will e um escravo (que entra mudo e sai calado).
Watling
L’Ollonais e eu estamos condenados igualmente; não parece que seja muito difícil a homens da nossa idade bulharmos.
Will
Sendo como sois, piratas tão temidos, é mesmo uma pena que há tanto tempo vivais desassossegados. Mas Capitão, que me respondeis agora ao que primeiro vos perguntei ?
Watling
Não posso responder-vos senão que já vos disse, a minha filha ainda é muito criança, apenas tem quatorze anos; ainda falta que dois orgulhosos verões passem por sobre a sua cabeça para a julgar mais madura para o matrimônio.
Will
Mais novas do que ela já são mães felizes.
Watling
Sim, mas as que são mães antes, gafam-se rapidamente.
N. A. Menos de quatorze anos e já são mães felizes… Perto dessas me sinto uma velha grávida, aos vinte e três anos. E o pior é que ainda não me acho madura para o matrimônio. Com minha idade Helen já estava casada com Thomas Tew há dois anos e era dona do Jolly Roger, equivalente a ser dona do Studio 54. Eu aqui, pelejando nas letras. Depois que terminar isso vou trocar os papéis originais do velho Shake por muitos papéis verdinhos. Ah! Isso vou.
Entram Henri e Romeu.
Henri
É no Jolly Roger a festa do Capitão John Watling. Lá, a bela Anny Bonny, de quem tu tanto gostas, costuma cear com todas as belezas admiradas de Port Royal; deves ir lá e observa-a sem opinião antecipada; compara-lhe o rosto com alguns que eu te hei-de mostrar; hei de convencer-te de que teu cisne não passa dum corvo.
Romeu
Irei, não para ver esta tal beleza, mas para gozar o esplendor da que eu adoro. (Saem)
Cena III
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Quarto de Ethel, no brigue de Watling.
Entram Ethel e seu guardião, o escravo jamaicano.
Escravo
Na minha alforria que posso dizer a sua idade sem lhe faltar uma hora.
Ethel
Tenho quatorze anos.
Escravo
Aposto os meus quatorze dentes, e para bem dizer só tenho quatro, se você tem quatorze anos. Quantos dias faltam para a festa de São pedro ?
Ethel
Uns quinze dias pouco mais ou menos.
Escravo
Pois seja; foi depois daquele terremoto de há onze anos que você se desmamou, precisamente neste dia.
Ethel
Faze o favor de te calares.
Escravo
Está bom, está bom. Estou calado. Deus te crie para a boa sorte! A menina era a mais linda criança que eu tenho criado: quem pudera viver até vê-la casada?! Era o que eu mais desejava.
Ethel
Isso é uma honra que eu nunca pensei.
Escravo
Uma honra! Se não fosse eu a tua única ama havia de dizer que bebeu o juízo com o leite. Numa palavra: agrada-te o amor de Will ?
Ethel
Olharei para ele como ordenar meu pai, mas não sei se o olhar basta para fazer nascer simpatia.
Escravo
Bom, apronta-te. Teu pai e Will esperam-te no Jolly Roger. (Saem)
N.A. Sem querer interromper e já interrompendo, farei um parênteses para falar de uma coisa que tem e não tem a ver com esta história. No dia em que consegui os papéis, lá na Mangueira, teve uma hora em que me interessei pela conversa do sambista renegado. Foi quando falou sobre sua antepassada Martina da Glória, a mulata balzaquiana, caso de Bois-le-Blon. Disse que era, supostamente, filha de Villegaignon com uma mestiça (que depois vim a descobrir ser Marina da Glória, filha bastarda de Martim Afonso de Sousa e primeira espiã brasileira de que se tem notícia). Tendo a acreditar na origem dos papéis do velho Shake porque, desde pequena, meu avô plantou em minha cabeça o conceito de que bêbado não mente. Hoje sei que era um pretexto dele para tomar em paz umas cervejinhas e, quando chegava tarde, fazer minha avó acreditar em qualquer desculpa esfarrapada. Mas o conceito vingou em minha mente e nunca consegui me livrar completamente deste absurdo.
Cena IV
_______
Rua.
Entram Romeu, Jack e Henri, com cinco ou seis máscaras e gente com brandões.
Romeu
Então, faz-se-lhe o discurso de apresentação ou entra-se sem cerimônia ?
Henri (falso como um dobrão de três dólares)
A moda das cerimônias já passou. Não se lhe manda Cupido de olhos vendados com arco de Tártaro pintado de branco, afastando as senhoras diante dele como um gaiato encarregado de afugentar corvos.
Romeu
Dêem-me um brandão, não estou disposto a dançar; como sou sombrio, fica-me bem levar a luz.
Jack
Gentil Romeu, queremos que danseis.
Romeu
Se não estivesse loucamente ferido pela flecha de Cupido, voaria com as asas ligeiras, mas estou de tal forma atado que já não posso saltar mais alto que a sombria dor: eu sucumbo ao peso do amor.
Jack
Se o amor é brutal convosco, porque não o sois com ele ? Pagai-lhe com os mesmos dobrões; se vos fere, feri-o a ele e vencê-lo-eis. Uma máscara! (Mascara-se) Ora, aqui está uma máscara para cobrir outra.
Henri
Vamos, batamos, entremos; e logo que entremos todos, toca à dar a perna.
Romeu
Tive um sonho esta noite…
Jack
E eu também.
Romeu
Bom! Qual foi o teu ?
Jack
Que os sonhadores se enganam muitas vezes.
Romeu
Basta, basta, Jack; não tens dito senão banalidades.
Henri
Rufem os tambores. (Saem)
N.A. Adorei esta fala “os sonhadores se enganam muitas vezes”. Talvez eu seja do tipo. Já vejo meu livro vendendo horrores, noites e mais noites de autógrafos, eu disputada pelas editoras, enfim: a glória. Acho que preciso ficar mais atenta à verdade desta fala de Jack.
Cena V
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Na festa de John Watling, taverna Jolly Roger.
Romeu (a um escravo)
Quem é aquela senhora que dá a mão àquele fidalgo acolá no fundo ?
Escravo
Não sei.
Edward
Se bem me lembro, esta voz deve ser d’algum L’Ollonais. Vai-me buscar a minha espada, ó pequeno. Será possível ? Este meliante atreve-se a vir aqui mascarado, para se rir e fazer escárnio da nossa festa ?
Watling
Que tens, meu sobrinho ? Por que estais assim zangado ?
Edward
É um L’Ollonais, um dos nossos inimigos, um celerado, que veio sem ser convidado para fazer pouco da nossa festa.
Watling
É o Romeu ?
Edward
É ele, este malvado do Romeu.
N.A. Bom. Romeu fica na festa paquerando Ethel, enquanto seus fiéis amigos fazem uma rodinha, só de piratinhas, para contar piadas indecentes, impublicáveis de tão cabeludas. Coisa de adolescentes. Vão sair da festa sem levar sequer uma mulher, o que é bem feito. Romeu, que não estava na roda de piratas-mirins, pelo menos leva uma promessa.
Mesa de Ethel, quatro da matina. Só ela e o escravo jamaicano.
Ethel
Quem é aquele que não quis dançar ?
Escravo (Evasivo e com a língua pastosa)
Aquele é que não o conheço.
Ethel (Que só tem quatorze anos, mas não é boba)
Vai saber. Se é casado, o meu túmulo é o meu leito nupcial. (O escravo que se afastava, volta)
Escravo (Preocupado com a própria cabeça)
Chama-se Romeu e é um L’Ollonais, único filho do maior inimigo da menina.
Ethel
Amar quem devo odiar! Não o conhecer para tão cedo o amar! E tão tarde para conhecê-lo ?
Escravo
É, já é tarde, filhota. Passa das quatro da matina.
Ethel
Que monstruoso amor me nasceu no coração! Amar um inimigo aborrecente!
Escravo
Que está aí a dizer ?
Ethel
São uns versos que aprendi com um dos meus pares (Vozes interiores chamam Ethel)
Escravo
Já lá vamos, senão Helen Tew vos varrerá da taverna. Já se foram todos embora e nós estamos a sair na xêpa.
Coro de Piratas
Agora no seu leito de morte agoniza o amor. Agora Romeu ama a quem o ama: os seus olhares cruzaram-se e enfeitiçaram-se. Mas como há-de ele desabafar a suas mágoas com a suposta inimiga ? E ela também, palpitando de amor, como exprimir numa entrevista tudo quanto sente por ele ? Só a paixão lhes dará força e tempo e ocasião, para cairem nos braços um do outro e o excessivo rigor fugir diante das excessivas delícias. (Sai)
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ATO SEGUNDO
Cena VI
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N.A. Romeu e Ethel, a filha do pirata, iniciam um namorico escondido. Jurinhas de amor pra cá, jurinhas de amor pra lá, tudo não ia passar disso se não acontecesse um festival de cacas. Primeira delas: os pombinhos resolvem se casar secretamente e para tal contam com o apoio um tanto irresponsável do Padre Lorenzo, jesuíta modernoso tipo Padre Marcelo Rossi; e do escravo jamaicano que não sabe onde está se metendo e não tardará a perder o pescoço por conta desta bobeira. As cenas I, II, III, IV e V, deste Ato, não vieram no meio da papelada original.
A cela do Padre Lorenzo.
Entram Padre Lorenzo e Romeu.
Padre Lorenzo (pressentindo a merda que vai fazer)
Queira Deus que os sorrisos do céu baixem favoravelmente sobre este santo ato e que o futuro não traga desgostos de que haja arrependimento.
Romeu
Amém! Amém! Mas venham os desgostos que vierem, podem contrabalançar as alegrias que a vista da minha Ethel me dá dentro em breve ? Unidas as nossas mãos pelo santo sacramento, que venha a morte, assassina do amor, fazer o que ela quiser; já é bastante o poder chamar-lhe minha.
Entra Ethel, que na verdade é calvinista disfarçada de católica e há séculos não vai à Igreja.
Ethel (Falsa como um dobrão de três dólares)
Boas tardes, meu santo confessor.
Padre Lorenzo
Romeu te agradecerá por mim e por ele, minha filha.
Ethel
E eu agradecerei por nós dois, pois que sem isso os seus agradecimentos não seriam pagos.
Padre Lorenzo
Vinde, vinde comigo: em breve poderei estar sós, quando a santa Igreja vos abençoar e faça de vós uma só e única pessoa.
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ATO TERCEIRO
Cena I
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N.A. Segunda caca. Num ato tresloucado e francamente adolescente, os piratas-mirins dos clãs Watling e L’Ollonais resolvem se desafiar. Na calada da noite roubam dois navios dos patriarcas para fazer um pega – ou tirar um racha, como queiram – de Port Royal até Tortuga. No meio do caminho são apanhados por uma rápida tempestade de verão, muito comum no Caribe. No meio da tempestade – pista molhada, digamos assim – o navio de Watling, pilotado por Edward, faz uma manobra mal feita e se choca com o navio de L’Ollonais, pilotado por Romeu. Na batida, Jack cai no mar encapelado, vindo a falecer. Ato contínuo, Romeu aborda a embarcação de Edward, chamando-o de “barbeiro” e outras coisas impublicáveis. Há uma discussão entre eles; os dois desembainham as espadas e batem-se. Edward tomba morto pela espada de Romeu. Merda total. Os navios retornam à Port Royal com as bandeiras-pirata entre as pernas (para usar uma figura de linguagem). Romeu foge para evitar o flagrante que o condenaria à forca no patíbulo de Gallows Point. (Naquela época não tinha Febem, nem esta coisa de que menor é inimputável.)
Entram o Governador da Jamaica, John Watling, Francis L’Ollonais e mais pessoas.
Sir Thomas
Onde estão os celerados que começaram esta desordem ?
Henri (borrado de medo, com a voz de falsete do Dr. Smith)
Oh! Nobre Governador, posso expor todas as fases desgraçadas e tão fatal desastre; está ali no convés, morto pelo jovem Romeu, o homem que matara o vosso parente, o bravo Jack.
Sir Thomas
Quem foi que começou esta sanguinolenta questão ?
Henri
Edward, aqui estendido, morto às mãos de Romeu.
Watling
É um parente de L’Ollonais; a afeição arrasta-o à mentira; ele não diz a verdade: foram vinte os conjurados para este sinistro combate. Foram precisos vinte para matar um! Peço justiça! Deveis concedê-la, oh! Governador; Romeu matou Edward, não deve permitir-se que Romeu viva!…
Sir Thomas
Romeu matou-o, mas ele tinha matado Jack. Quem me deverá pagar o valor do seu sangue precioso ?
L’Ollonais (tentando limpar a barra do jovem meliante)
Não deve ser Romeu, Governador, porque ele era amigo de Jack. O seu crime foi simplesmente ter executado o que a lei havia de decidir – a morte de Edward.
Sir Thomas
E por esta ofensa exilamo-lo imediatamente da cidade: eu mesmo sou vítima dos vossos ódios; o meu sangue corre por causa dessas ferozes disputas: que Romeu parta imediatamente, porquanto se for encontrado, essa hora será a última da sua vida. Levai daqui este corpo. A nossa vontade deve ser executada. A clemência para com assassinos é assassina também. (Saem)
N.A. Como se pode ver, o bicho pegou. Ethel ainda não sabe do ocorrido, mas o alcoviteiro escravo jamaicano não tardará a fofocar.
Cena II
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Quarto de Ethel, na mansão dos Watling.
Entra o escravo jamaicano com uma escada de corda.
Ethel
Escravo! Que notícias há ? Que trazes tu aí ? São as cordas que Romeu te disse que fosses buscar ?
Escravo
Sim, sim, são as cordas. (Deita-as no chão).
Ethel
Que notícias me trazes tu ? O que é que te faz torcer assim as mãos ?
Escravo (Imitando Silvio Santos: “ele morreu, Lombardi!”)
Dia aziago! Morreu! Ele morreu! Morreu! Estamos perdidos! Que dia aziago! Fugiu! Morreu! Mataram-no!
Ethel (Histérica como uma fã dos antigos Menudos))
Que demônio és tu para me torturares assim ? Romeu matou-se ?! Basta que digas sim; Se tal palavra proferes e se os seus olhos estão fechados para sempre, se me dizes que lhes é noite e te farão responder sim, deixo de existir. Dize-me sim ou não. Estas bem simples palavras decidem da minha felicidade ou da minha desventura!
Escravo (Capricha no drama e no suspense, com secreta felicidade)
Eu via a ferida – via-a com meus próprios olhos. Que Deus nos proteja! Via-a no seu robusto peito. Um triste cadáver! Um cadáver ensanguentado: pálido, pálido como cinza, todo manchado de sangue, todo sujo de sangue coalhado! Até desmaiei! (Suprema ousadia. Dá uma cheirada nos sais de Ethel)
Escravo (Continuando a encenação)
Edward! Edward! Meu melhor amigo, o cortês Edward! Esse honrado fidalgo! Nunca eu tivesse vivido para o ver morto!
Ethel
Que tempestade é essa que se desencadeia em tão contrárias direções ? Degolaram Romeu ? Edward morreu ? O meu querido primo ?! O meu senhor bem amado ? Que venha o juízo final. Quem há-de viver se esses dois morreram ?
Escravo (Cruel)
Edward morreu. Romeu foi desterrado. Romeu matou-o.
Ethel (Referindo-se a Romeu)
Coração de serpente oculto por entre flores! Jamais em caverna tão bela habitou dragão assim! Belo tirano! Angélico demônio! Corvo de penas de pomba! Cordeiro com raiva de lobo! Lobo! Execrável realidade debaixo de divina aparência! Justo injusto! Santo danado! Nobre infame! Ó natureza! Que tinhas tu que disputar com o inferno, quando instalaste uma alma de demônio no paraíso mortal de carne tão encantadora! Oh! Para que há de a malvadez habitar em tão magnífico palácio ? Nunca houve livro de texto tão vil com tão rica aparência.
N.A. Com referência ao livro que estou escrevendo, faço minha esta última frase de Ethel (he he he).
Bem. E assim, praguejando contra o dito amor da sua vida, a filha do pirata, na falta de um cartão de crédito liberado, gasta seu rico vocabulário em impropérios de patricinha, mas logo se arrepende. Está meio confusa e já não fala mais coisa com coisa.
Ethel
E posso eu falar mal do meu esposo ? Ah! Meu pobre senhor, qual há-de ser a língua que há-de acariciar teu nome quando eu, há três horas vossa esposa, o infamei ? mas por que foste assim mau, que mataste meu primo ? Este vilão do meu primo quereria matar o meu esposo! (E para o escravo) Leva essas cordas; pobre cordas fostes enganadas, vós e eu. O meu amor foi desterrado! Tinha-vos para lhe servirdes de caminho para o meu leito virginal, morro virgem (O escravo revira os olhos, como que duvidando) e sou viúva! Vou para o meu leito nupcial! A morte e não Romeu é que é a senhora da minha virgindade.
Escravo (Sonso, como se fora dono de um grande segredo)
Eu vou ter com Romeu para vos vir consolar. Eu sei perfeitamente onde ele está. Está escondido na cela de Padre Lorenzo.
Ethel
Oh! Traze-m’o aqui! Dá-lhe este anel e recomenda-lhe que me venha dizer o seu último adeus. (Saem)
Cena III
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Cela de Padre Lorenzo.
Entra o escravo jamaicano.
Escravo
Reverendíssimo senhor! Dizei-me, oh! Dizei-me onde está o senhor da minha menina, o senhor Romeu ?
Padre Lorenzo
Está ali, embriagado pelas lágrimas…
Escravo
Tal como ela.
Padre Lorenzo
Lamentável simpatia! Dolorosa conformidade de situação.
Escravo (Para Romeu)
Meu senhor, passaria aqui a noite inteira a enxugar tuas lágrimas; mas minha menina vos espera. Aqui tem o anel que ela me recomendou que vos desse. Não vos demoreis porque se faz tarde. (Sai)
Romeu
Como se reanima a minha coragem com esta dádiva!
Padre Lorenzo
Parte, boas noites; foge antes que a guarda tome os seus postos ou foge disfarçado ao amanhecer. Vai para Tortuga no navio de Roche Brasiliano. Eu te mandarei notícias.
Romeu
Adeus. (Saem)
Cena IV
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N.A. Esta cena também não está no meio da papelada, mas suponho que aqui, John Watling deveria armar o casamento de Ethel com Will. É. É isso aí.
Cena V
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Quarto de Ethel.
Romeu e Ethel levaram um papo de despedida. Já estão no final.
Ethel
Meu Deus! A minha alma está cheia de pressentimentos funestos! Estás-me a parecer tanto em baixo, que te vejo como um cadáver no fundo de uma tumba. Ou a minha vista me engana, ou tu estás tão pálido…
Romeu
Também a mim me pareces pálida; é porque os desgostos bebem nosso sangue. Adeus! Adeus! (sai)
N.A. Vou pular esta parte, que é meio triste. É a parte em que Ethel é informada que se casará com Will. Naquele tempo era assim: os pais informavam e pronto – casa, fia ! O casamento deverá acontecer numa quinta-feira. Estamos numa terça. Ethel então vai amadurecendo a idéia de dar cabo à própria vida. Essa parte não me atrai; e também não me sinto madura para o casamento. Enquanto isso vou tomar um café e volto para escrever o Ato IV.
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ATO QUARTO
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Cena I
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Cela de Padre Lorenzo
Entram Padre Lorenzo e Ethel.
Padre Lorenzo
Sei muito bem os teus desgostos, que fazem andar a minha cabeça à roda; sei que na quinta-feira deves estar casada como jovem fidalgo Will e sem que ninguém possa retardar isso.
Ethel
Não me digais, meu padre, que sabeis dessa desgraça e que não podeis remediá-la; se não me dais auxílio dizei-me que aprovais a minha resolução e neste punhal estará o meu remédio. Respondei-me com brevidade; ardo em desejos de morrer, se a vossa resposta não me der remédio.
Padre Lorenzo (Pensando: se esta louca se matar aqui, estou frito)
Basta, filha minha; antevejo um vislumbre de esperança. Há tempos atrás, uma feiticeira vodu antilhana, de nome Ezili Dantor, ensinou-me um troço que vem a calhar.
Ethel (Meia que surpresa)
Bode preto ? Galinha preta ? Bozó na encruzilhada ?
Padre Lorenzo (Ignorando as perguntas estúpidas da moça)
Vai para casa, finge-te alegre; consente no casamento com Will. Amanhã é quarta-feira; à noite vai-te deitar sozinha, não deixes que o escravo jamaicano fique por lá; toma este frasco e quando estiveres deitada bebe o líquido que ele contém; imediatamente um frio e letárgico humor percorrerá as suas veias; o teu pulso há-de parar, depois de perder a regularidade dos seus movimentos; nenhum sinal de respiração, nenhum calor, atestarão que vives; as rosas das tuas faces e dos teus lábios se mudarão em cinzas pálidas; as pálpebras se fecharão como quando a morte apaga a luz da vida; cada um dos teus membros sem flexibilidade nem liberdade, frios, imóveis, parecerão mortos; ficarás quarenta e oito horas debaixo dessa enganosa morte aparente e depois hás-de despertar como dum agradável sono. Agora, quando noivo for pela manhã para te acordar, achar-te-á morta: e então como de costume, vestida com o teu mais belo vestuário, o teu corpo no esquife aberto será levado para o mausoléu dos Watling. Neste entretanto e até que despertes, Romeu há-de receber o aviso do nosso estratagema; virá aqui: ambos espiaremos o teu acordar e nessa mesma noite te levará para Tortuga, no navio do pirata Roche Brasiliano. Este meio te livrará da vergonha presente, mas é preciso que não haja circunstância pueril, nem nenhum receio feminil faça tropeçar a tua coragem no momento da execução.
Ethel (Achando que o remédio é o Santo Daime)
Dai-me, dai-me esse remédio, e, não me faleis em medo. (Saem)
N.A. Como vimos, a intenção do ardiloso jesuíta é transformar Ethel num zumbi de rosto bonito; parece que ele não irá usá-la para nada; é só para ver se o feitiço funciona, coisa que ele não tem certeza. De qualquer maneira, fará tudo como ensinou a bokor Ezili Dantor. Se Ethel morrer, morreu. Se não, aí terá nas mãos uma arma poderosa, não se sabe ainda pra que. Padre Lorenzo capturará o ti bon ange da filha do pirata e o aprisionará numa jarra de vidro; e talvez leve o anjinho da guarda da menina para os seus superiores da Companhia de Jesus, o que certamente lhe valerá uma promoção ou a morte na fogueira. Mas esta última hipótese não passa pela sua cabeça. E o padre já não aguenta mais esta ilha cheia de piratas bêbados e fedorentos.
Cena IV
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Uma sala da mansão Watling.
N.A. Pulei as cenas II e III porque também não vieram junto com os originais; e estou com sono e meio sem idéias para escrevê-las. É a gravidez, acho. Bem. Mas imaginemos que Ethel já tomou a poção vodu.
John Watling chama o escravo jamaicano.
Watling (para o escravo serelepe)
Vai acordar a menina; vai, ajuda-a a vestir. Eu vou conversar com Will. Despacha-te! Anda depressa! Avia-te! Anda, que o noivo já chegou! (Saem)
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Cena V
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Quarto de Ethel; a filha do pirata está estendida na cama.
Entra o escravo jamaicano e se depara com a cena.
Escravo
Olhai! Olhai! Oh! Dia desgraçado!
Entra John Watling.
Watling
Então Ethel desce ou não desce ? Já chegou o noivo.
Escravo (Com o jeito Silvio Santos: “Ela morreu, Lombardi!”)
Está morta! Morreu! Está morta! Oh! Que desgraçado dia!
Watling
A morte que m’a roubou, para me fazer gemer, prende-me a língua: não posso falar…
Entram Padre Lorenzo, Will e músicos.
Padre Lorenzo (Falso como um dobrão de três dólares)
Vamos, a noiva já está pronta para ir para a Igreja ?
Watling
Está pronta para ir e não tornar jamais! Meu filho! Na noite que precedeu o teu casamento, vei a morte roubar-te a tua noiva! É a morte quem te substitui, foi ela quem desposou a minha filha! Tudo pertence à morte!
Will (Num comentário infeliz)
E foi para isso que eu tanto ansiei por esta madrugada ?
Padre Lorenzo (Doido para capturar o ti bon ange de Ethel)
Vamos, senhores, retirai-vos aos vossos aposentos. Senhor Will, ide com eles. Preparai-vos para acompanhardes este belo corpo à sua última morada! (Saem Will, Watling e o Padre, este para ir buscar a jarra de vidro.)
Primeiro músico
Podemos guardar os instrumentos e irmo-nos embora ?
Escravo
Podeis, rapazes, podeis; bem vedes em que estado as coisas se encontram. O reggae mixou. (Sai)
Entra Pedro.
Pedro
Olá! Olá! Senhores músicos. Vamos ao reggae! Fazem favor, tocai “Lovely Heart”, se quereis que eu remoce. Vamos, tocai “Lovely Heart”.
Primeiro músico
Não estamos em maré de tocarmos coisas tristes.
Pedro
Por que não ?
Primeiro músico
O que vai nos dar ?
Pedro
Não é dinheiro, não, mas uma tapona, meu gaiteiro!
Primeiro músico
Oh! Refugo dos criados.
Pedro
“Com tortura apunhala o destino
E a alma nos vem trespassar
Só a música de som argentino…”
Por que é o som argentino ? Por que é que a música tem o som argentino ? Vá; que respondeis a isto, Simão Cantarola ?
Primeiro músico
Ora essa! É porque o dinheirinho tem o som tão lindo…
Segundo músico
A música tem um som argentino, porque os músicos só tocam por dinheiro.
Pedro
Também não é mau. E vós que dizeis, Tiago Viola ?
Terceiro músico
Palavra se eu sei…
Pedro
Desculpai-me. Vós é que sois o cantor ? E então eu falo por vós: a música tem o som argentino, porque uns atrevidos como vós sois, andam sempre a tinir.
“Só a música de som argentino
Bem depressa vem nos consolar.”
(Sai cantando)
Primeiro músico
Oh! Que perfeito malandro.
Segundo músico
Enforcado seja ele! Vamos, entremos: esperemos os doridos, mas toca a jantar (Saem).
N.A. O que será que o velho Shake queria insinuar com este trechinho dos músicos ? Será que o som argentino já tinha alguma coisa a ver com as Falkland/Malvinas ? Tem horas que me falta cultura e quando falta cultura alguma coisa acaba saindo errado. Vocês vão ter a prova do que eu estou dizendo, logo no começo do Ato Quinto.
P.S. Ingleses e argentinos tem uma velha rixa; tal como os Watling e os L’Ollonais. Mas todo argentino quer ser inglês. Êta, complexo de inferioridade! Eu sei um monte de piadas sobre argentinos. Desculpe, leitor (principalmente se você for argentino), esta nota nem cabe aqui. Depois vou tirar.
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ATO QUINTO
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Cena I
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Rua de Tortuga.
Romeu já está em cena. Entra Obeah, o escravo antilhano.
Romeu
Notícias de Port Royal ? O que há, Obeah ? Não trazes carta de Padre Lorenzo ? Como está Ethel ? Como está meu pai ? Ethel, Ethel, como está ? Se ela está bem, tudo estará bem.
Obeah
Nesse caso tudo está bem, porque ela está bem. O seu corpo jaz no mausoléu dos Watling e a parte imortal da sua existência vive com os anjos! O padre capturou seu ti bon ange, o pequeno anjo guardião da filha do pirata.
N.A. Romeu, que é analfabeto em vodu, não entende a mensagem em código que Obeah lhe passa. Pensa que sua amada finou-se. Não sabe que Ethel agora é um zumbi e que poderá reviver. O escravo ainda tenta explicar, mas o rapaz está transtornado e não quer ouvir; este será o seu erro.
Romeu
Isto é verdade ? Desafio-te, estrela funesta. Sabes onde eu moro ? Vai falar com Roche Brasiliano; zarparemos imediatamente para Port Royal. (Saem)
N.A. Romeu, como Verônica do Paulo Coelho, decide morrer: só que junto com Ethel. Compra um veneno n’O Boticário (que hoje vende perfumes) e parte para o cais onde Roche Brasiliano já está levantando a âncora do brigue para levá-lo à Port Royal. Viram o que eu queria dizer ? Romeu não tinha cultura sobre a religião vodu, entendeu tudo errado e ainda era impaciente; agora vai pagar pela burrice.
Cena II
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Cela de Padre Lorenzo.
Entra Padre Juan.
Padre Juan
Reverendo Irmão em Santo Ignacio de Loyola.
Entra Padre Lorenzo.
Padre Lorenzo
Esta voz deve ser a do irmão Juan. Sede bemvindo! Que novas trazeis de Tortuga? De Romeu ? Ou preferiu escrever-me ?
Padre Juan
Não me foi possível enviar tua carta a Romeu e tenho-a aqui: não houve portador por causa do medo da peste.
Padre Lorenzo (Falando como o Robin interpretado por Burt Ward)
Que desgraçado contratempo! Pela minha sagrada ordem! Essa carta era valiosíssima, continha coisas de grande e preciosa importância. Podem suceder gravíssimos acidentes por falta de entrega! Padre Juan, vai, vai-me buscar uma alavanca e traze-m’a imediatamente para aqui.
Padre Juan
Vou já. (Sai)
Padre Lorenzo
Preciso de ir só ao mausoléu; daqui a três horas Ethel acordará. Há-de ralhar-me de não ter avisado Romeu, mas escreverei de novo para Tortuga e escondo Ethel na minha cela até que Romeu venha. Pobre corpo vivo, metido no túmulo dum morto. (Sai)
N.A. Bem. Aqui a história muda completamente de figura. Romeu não chegará, depois narrarei porque. Ethel acorda, dá um esporro no incompetente jesuíta, mas não tem jeito. O padre ainda a esconde em sua cela por um tempo e escreve uma nova carta; porém esta nunca chegará a Romeu (mais adiante o leitor também ficará sabendo porque). Ao final e ao cabo de uma semana, percebendo que Romeu não virá mesmo, Ethel corta os cabelos, veste-se de homem; e assumindo a identidade secreta de Mary Read, embarca no navio do pirata John “Calico Jack” Rackham. Ethel, com o codinome Mary Read, acabará se tornando, senão a mulher mais amada, pelo menos a mais famosa mulher-pirata do Caribe. Sua participação nessa história, provavelmente, se encerrará por aqui. Tirando o do jovem amado de Ethel, o destino dos outros personagens não importará muito agora.
Vejamos o que aconteceu com Romeu.
No caminho entre Tortuga e Port Royal, outra daquelas tempestades tropicais, esta bem mais brava, atira no mar mais da metade da tripulação de Roche Brasiliano, inclusive o próprio, que virará um fantasma. Na tormenta, Romeu perde o vidro de veneno. O leme do barco quebrou-se, as velas rasgaram-se todas, de forma que o navio fica à deriva durante dias, indo parar nas costas da América do Sul. Romeu chora e lamenta sua sorte o tempo todo. Os piratas que sobraram, duros homens do mar, vão se enchendo daquela lenga-lenga e resolvem abandonar o rapaz numa ilha deserta, a ilha de João Fernandes, onde Romeu será encontrado anos depois, barbudo, pirado e fazendo artesanato para matar o tempo. Diz chamar-se Robinson. Um pequeno e revelador diário foi escrito por ele nesta ilha. Vejamos um trecho, o único que chegou até minhas mãos; e que confirma sua verdadeira identidade.
“Querido diário”,
“Depois de sozinho nesta ilha, sem mais esperanças de encontrar Ethel, avistei um ser humano. Um silvícola alto e espadaúdo, que logo me chamou a atenção. Dei-lhe o nome de Sexta-feira. Notei que o rapaz era bonito e muito bem servido, o que imediatamente me fez lembrar de uma frase que, certa feita ouvi do meu primo Henri. Dizia-me ele, num momento em que eu pedia que me ensinasse como esquecer Ethel: Dá liberdade aos teus olhos: que olhem para outras belezas. Fiquei olhando para aquele pedaço de homem, nós dois sozinhos numa praia paradisíaca; e alguma coisa se acendeu dentro de mim.”
Sobre o destino final de Romeu e Ethel, a filha do pirata, há controvérsias, porque a história é por demais imprecisa. Uma corrente diz que Romeu ou Robinson, como ele insistia em ser chamado, foi encontrado dez anos depois por um navio-pirata. Os piratas, pensando que Sexta-feira era um canibal, liquidaram o silvícola, levando um inconsolável Romeu/Robinson para o navio. Depois de dias de viagem, não aguentando mais o chororô do rapaz, também ficaram de saco cheio e o atiraram ao mar, onde ele veio a falecer.
A outra corrente afirma que o navio que o resgatou era o de Mary Read/Ethel; e que depois deste encontro, ela, Romeu/Robinson e Sexta, foram terminar suas vidas em Paris, onde viveram felizes para sempre; consta inclusive que eles tiveram um filho. Pessoalmente – como sou uma romântica incurável e o meu estado interessante tem me deixado ainda mais sensível – prefiro este final. Não sei se o velho Shake concordaria, mas ele está morto e não pode dar a sua opinião. Portanto, meu caro leitor, – como diria um filósofo apresentador de um antigo programa da rede Globo – o final, você decide.